Natal na II Grande Guerra (Parte III): a chegada dos americanos e sua influência no cotidiano da cidade

A vinda das forças americanas para Natal se deu ainda antes de fechados os acordos diplomáticos. De forma disfarçada, os pousos e decolagens feitos por aeronaves americanas no aeroporto de Parnamirim começaram por volta de junho de 1941.

Sobre essa discreta chegada, era notada, em Parnamirim, a passagem dos primeiros aviões de guerra dos Estados Unidos camuflados de transportes comerciais. Dirigiam-se à Ilha de Ascensão, de onde passavam à Bathurst, no Gâmbia, imediações de Dakar. Nada mais que um lance discreto sobre o tabuleiro atlântico, visando estancar, na hora precisa, a irresistível vocação de sucessos do III Reich.

Com o acirramento da guerra e a presença das divisões alemãs no norte da África, mais crescia a preocupação dos aliados com relação a uma possível investida das forças nazistas à América do Sul, e, por sua localização, Natal seria a “ponte” ideal para uma provável invasão. Natal, definitivamente, estava no fogo cruzado e passou, por isso, a merecer grande atenção dos Estados Unidos, maior potência das Américas.

Propaganda da Coca-Cola, refrigerante que era a feição dos EUA – Fonte: zanesville.com

Assim, dentro dessa forma ainda disfarçada, o Brasil, através do Decreto 3.642, de 25 de julho de 1941, permitiu que a Panair do Brasil, subsidiária da Pan American World Airways System, começasse a aparelhar o aeroporto de Parnamirim, de maneira que pudesse receber aviões de grande porte. A partir de então, começou a chegada dos americanos a Natal. Apesar de discretamente vestidos como técnicos, os militares norte-americanos logo despertaram a atenção da população natalense. Primeiro, pela etnia, louros, altos, até então praticamente desconhecida pelos nativos. Em segundo lugar, pelo crescente contingente de forasteiros que passaram a fazer parte do cotidiano da cidade.

Como não poderia deixar de ser, a cidade do Natal modificou-se de maneira muito significativa com a presença do grande número de militares estrangeiros aqui sediados. Natal perdia aos poucos suas características de cidade pequena. Seus habitantes que até então levavam uma vida modesta e tranquila, passaram a fazer parte de um local que passou a tomar, inclusive, um aspecto cosmopolita, com a passagem pela cidade de pessoas de outras nacionalidades, com direito a figuras importantes, como D. Francis J. Spellman (arcebispo de Nova York), Bernard (príncipe da Holanda), Higinio Morringo (presidente do Paraguai), Sra. Franklin D. Roosevelt (Primeira-dama dos Estados Unidos), Sr. Noel Cherles (embaixador do Reino Unido no Brasil), a madame Chiang Kai Chek (primeira-dama de Formosa), T. V. Soong, ministro das Relações Exteriores da China, os atores Humphrey Bogart, Clark Gable, o músico Glenn Miller, o cantor Al Johnson, entre outras personalidades.

Anna Eleonor Roosevelt, primeira-dama dos EUA, participa de solenidade em Parnamirim – Foto: CD Natal 400 anos

Surgiram associações recreativas como, por exemplo, os ‘Clubes 50’. Tanto o Aero Clube como igualmente o Clube Hípico foram alugados com o objetivo de realizar bailes. A finalidade principal, certamente, era promover uma maior integração dos militares norte-americanos com a população natalense. Houve, por causa disso, uma invasão de ritmos estrangeiros: rumba,”conga,”bolero.

A influência norte-americana se fez sentir também na linguagem, com a introdução de algumas palavras e expressões inglesas: “change money” (troque dinheiro), “drink beer” (beba cerveja), “give me a cigarrette” (dê-me um cigarro), “blackout” (blecaute), ente outras.

Americanos fazem compras na Casa Rio, de Alcides Araújo – Foto: Acervo de Família

 

Soldados americanos em “negociação” com um natalense – Foto: Acervo Clyde Smith, Jr

As moças passaram a agir com mais autonomia tendo incorporado modos e modismos americanos. Com a conivência das mães, que assumiram um novo comportamento, muitas começaram a fumar (Chesterfield era a marca predileta) e a beber “Cuba Libre”, uma mistura de rum com coca-cola.

Chesterfield, o cigarro da moda

Interessante lembrar que do entrosamento entre americanos e jovens natalenses resultaram alguns casamentos. Dessa mistura de raças, a historiadora Flávia Pedreira, que acertadamente chamou de ‘Chiclete eu Misturo com Banana’, faz o seguinte relato: “Consultando-se os cartórios da cidade, pode-se ver que a quantidade de casamentos entre estrangeiros e brasileiras nesse período foi bastante expressiva; entre os anos de 1942 e 1946, houve um acréscimo nos registros de nomes em línguas estrangeiras e
principalmente em inglês, como por exemplo: David Eugene Reynolds e Josefa Miranda Reynolds, Darci Hoffmann e Eva Baraúna Moura Hoffmann, Frank Willian Knabb e Thais Vieira Knabb, entre outros”.

Mas nem tudo era um mar de rosas. Se, por um lado, o relacionamento entre os americanos e moças natalenses fluía dentro de grande harmonia, ocorria o oposto com a população masculina local. As disputas pelas damas comumente terminavam em brigas que só paravam com a chegada das polícias brasileira e americana. Vale a pena registrar que nem só pelas “moças de família” os desentendimentos aconteciam. Na zona do baixo meretrício, localizada no bairro da Ribeira, não era diferente. Principalmente no Wonder Bar, o mais famoso ponto de encontro local, as querelas advindas pelas preferências das prostitutas levavam a brigas e confusões, com algumas, inclusive, chegando a sérias consequências. “Aqui foi assassinado um americano, que não era militar, mas um embarcadiço, sujeito que trabalha em navios estrangeiros”, conta Pedreira.

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Essa é talvez a única fotografia conhecida que mostra o interior do Wonder Bar. Nela aparece um soldado com uma das funcionárias de uma das casas de prostituição mais conhecidas de Natal. Esse prostíbulo era localizado nos fundos do sobrado nº 106 da rua Chile. Ao lado da escada que dava acesso ao piso superior funcionava o serviço de profilaxia de doenças, que eram nesse caso, venéreas. Fotógrafo: Não informado Ano: 1943. Fonte: curiozzzo.com

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O Bar Nacional, que ficava na Rua Doutor Barata nº 195. Na foto um soldado americano aparece ao lado de uma das garçonetes do Bar Nacional. Fotógrafo: Não informado. Ano: 1943. Fonte: curiozzzo.com

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Bonde da linha Petrópolis/Ribeira passando pela praça Augusto Severo. No prédio à direita funcionava um dos United Service Organizations existentes na cidade. Esse era conhecido com U.S.O downtown. O outro ficava em frente ao Reservatório R.2, na esquina da Av Getúlio Vargas com rua das Dunas. Fotógrafo: Não informado – Ano: 1943 – Fonte: curiozzzo.com

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A Ribeira era nessa época nosso centro comercial. Nesse bairro, a rua Dr Barata era nossa “5ª Avenida”, uma referência a umas das principais avenidas de New York. E foi lá, na rua Dr Barata, que nessa época, surgiu o Bar Nacional, que era o ponto de reunião e de divertimento dos militares da Royal Air Force (RAF), que tinham mesa cativa no lado esquerdo do salão onde ficavam horas bebendo Tom Collins, uma mistura de gim, água tônica, limão e açúcar. Nesse bar não tinham garçons. Como forma de instrumento de atração para os fregueses, aumentando assim o movimento do ambiente, Dona Sara, proprietária desse estabelecimento, recrutava apenas moças para o serviço de atendimento. Fonte: curiozzzo.com

Essas diferenças perdurariam por bem mais tempo, sendo motivo de grandes preocupações, principalmente para o governo americano, que, diante da sua necessidade, procuravam encontrar formas de um convívio entre os dois povos. Encontramos na obra “Trampolim para a vitória”, de Smith Júnior um depoimento do General Dwight Eisenhower, Comandante Supremo das Forças Aliadas, que sintetiza o valor de Natal: “Tive muita satisfação de pisar no solo no qual tanto pensei durante a guerra. Natal teve, como todos sabem, uma influência decisiva na guerra, possibilitando às Nações Unidas as principais condições para alcançar seus objetivos“.

General Dwight Eisenhower, Comandante Supremo das Forças Aliadas, em sua passagem por Natal – Reprodução

Em decorrência da guerra e, diante da impossibilidade, naquele momento, de se fazer translado de corpos, 146 americanos foram sepultados no Cemitério do Alecrim. Segundo Smith Júnior “no dia 10 de abril de 1947, um navio da Marinha americana chegou sob a missão denominada “Glory Operation” para remover os corpos dos soldados americanos […] Cada tumba tinha uma inscrição onde se lia “Morto próximo a Natal em serviço ativo”. Os restos mortais dos americanos foram devolvidos aos Estados Unidos”. De acordo com o historiador “o corpo de um militar americano permaneceu enterrado em Natal. Era o sargento Thomas N. Browning, do “22 Army Air Force Weather Squadron”.

Segundo Smith Júnior, “também estava enterrada no Cemitério do Alecrim a tripulação de um C-47 da Royal Air Force (Força Aérea Britânica que caiu nas proximidades de Açu, no Rio Grande do Norte. […] dois eram ingleses e um australiano. [ …] Por alguma razão, suas famílias concordaram que seus corpos permanecessem no Cemitério do Alecrim”.

E assim, Natal passou de uma pequena cidade sem importância, localizada no nordeste do Brasil para ser conhecida por pessoas de todo o mundo, tendo desempenhado um papel preponderante no mais amplo e sangrento conflito já registrado na História.

Fonte: “Carnaval em Tempos de Guerra”, de Minervino Wanderley

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Comentário (1)

  • Alexandre Magno de Montenegro Miranda Responder

    Excelente matéria Minerva. Poucas pessoas conhecem como foi a participação de Natal na segunda guerra mundial. Outro bom assunto para ser levado ao público, é sobre a construção da base aérea de Parnamirim. Vi no YouTube, um bom material do canal Letra&Música, do Lito e tal, desde o início e como se deu a doação do terreno e a construção da base aérea nas planícies de Parnamirim. Vou tentar localizar e te mando. Um abraço.

    5 de fevereiro de 2021 at 20:37

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