OBSTINAÇÃO: “DEPOIS DE QUATRO DÉCADAS TENTANDO, ME TORNEI MÉDICA AOS 65 ANOS”

Depois de se casar, ter quatro filhos, cinco netos, se separar e passar por muitos percalços na vida, a então dona de casa Dione Maria Matta da Silveira, hoje com 65 anos, enfrentou um processo judicial e conseguiu voltar para a universidade. Há um mês, se formou em medicina e atende a população carente do Pará

Depois de quatro décadas, Dione Maria se formou em medicina (Foto: Acervo pessoal)

“Desde que me entendo por gente, sonhava em ser médica. Meu pai era o meu maior incentivador. Dizia: ‘Minha filha ainda vai ser uma grande médica’! Era um sonho nosso, um sonho de infância que levei comigo por toda a vida. Como eu era a filha mais velha de seis irmãos, fui a primeira a prestar o vestibular, em 1974. Fiz prova para medicina numa universidade pública (UEPA- Universidade Estadual do Pará). Era bem difícil, mas passei de primeira, para total orgulho da minha família.

Até que, em 1977, conheci meu ex marido numa boate do Tênis Clube do Pará. Já havia namorado antes, mas ele foi, sem dúvida, o meu primeiro amor. Assim que começamos a sair, engravidei do meu primeiro filho, Emanuel, e abandonei a faculdade. Um ano depois, já estava grávida da minha segunda filha, Érica, e decidimos nos casar. Quando subi ao altar, tinha 22 anos e dois filhos: um no colo e outro na barriga. Na época, morávamos em Belém e meu marido, que era comerciante, foi transferido para Manaus. Então, larguei tudo e fui com ele. E segui engravidando… Vieram mais dois: Diana e Antônio Neto. Nada foi planejado, foi acontecendo. Com 27 anos, já tinha quatro filhos.

Até tentei voltar a estudar durante o meu casamento, mas com as gestações sucessivas e os quatro filhos a faculdade se tornou inviável. Eu começava e trancava. Não conseguia conciliar. O curso de medicina sempre foi muito puxado. Mesmo sem trabalhar fora, tinha quatro crianças para cuidar… Não sobrava tempo para nada.

Depois de um certo tempo, no entanto, as coisas foram ficando mais difíceis. Como sempre gostei de cozinhar, passei a fazer lanches para vender na rua e sob encomenda. Fazia de tudo: salgadinhos, bolos, pastéis… Minha especialidade eram os bombons de açaí, cupuaçu e castanha-do-pará, iguarias típicas do meu estado. Me lembro que vendia tudo, mas era uma trabalheira. Vivia exausta.

Depois de 22 anos de casada, aos 42, me separei. Para mim, foi uma libertação! Costumo brincar que, se um dia eu fui casada, não me lembro. Foram muitas traições e humilhações. Com o passar dos anos, ele me achava gorda, desinteressante, não fazia questão alguma da minha companhia. Levava a vida dele praticamente como se eu não existisse.

Nunca havia trabalhado fora e, com a separação, passei a fazer comida como total meio de sobrevivência minha e dos meus filhos. E foi sucesso total! Na verdade, foi a minha salvação para ajudar a alimentar e levar sustento para a minha família. Não havia esquecido do meu grande sonho, mas passei a ser a provedora de tudo: da casa e dos filhos. Meu ex foi viver com outra pessoa e teve mais dois filhos e nunca deu pensão para as crianças. A sorte era que a minha mãe nos ajudava em tudo.

Depois disso, nunca mais namorei. Até conheci alguns caras, mas é difícil alguém querer compromisso com uma mãe de quatro. Brinco que tomei trauma de casamento e compromisso sério com alguém. Preferi mesmo ficar sozinha, me dedicando totalmente aos meus filhos, ao meu trabalho com a culinária, sem nunca tirar da cabeça o meu maior foco e objetivo na vida — me tornar médica.

Assim que me separei, com os filhos já mais crescidos, passei a pensar um pouco mais em mim e menos nos outros. Larguei as coisas paralelas e fui à luta, mais focada do que nunca em concluir o curso de medicina. Ao todo, foram muitas idas e vindas à universidade. Só para sentir o drama: comecei em 1974 e depois de dois anos tranquei porque engravidei. Em 1981, tranquei novamente quando fui morar em Manaus. Me lembro que eu refazia a minha matrícula cheia de esperança e, às vezes, só podia cursar uma matéria, mas lá estava eu sempre tentando retomar meus estudos.

Meus quatro filhos me incentivavam muito a seguir em frente e voltar a estudar. Principalmente o caçula, Antônio Neto, que sempre torceu demais por mim. E pensa que foi fácil para eu conseguir retomar o meu curso? Tive que entrar com um processo para garantir o direito de frequentar a faculdade de medicina. Como havia abandonado o curso por mais de dois anos e meio, a universidade queria me impedir de voltar a estudar. Mas não me intimidei. Entrei na justiça e ganhei em todas as instâncias.

Já na volta às aulas sofri muitas dificuldades de adaptação e aceitação. O aluno mais velho sofre muita humilhação e discriminação, pois os jovens formam panelinhas para tudo. Nunca queriam formar grupos de estudo comigo, não me esmprestavam o material… Eu ficava sempre de fora, me sentia totalmente excluída. Tinha aula nos dois turnos na faculdade e à noite ainda fazia plantão no hospital, como acadêmica, sempre acompanhada de outros médicos. Ficava mais na pediatria do HPSM-MP, o maior hospital de Belém. Aprendi muito, mas ficava exausta. E ficava mais sozinha, no meu canto, mas com uma sede enorme em aprender. Havia sido tão duro chegar até ali, que eu não desistiria por nada. A maturidade me ensinou a seguir em frente e de cabeça erguida.

A universidade em que estudei, assim como todo curso de medicina, sempre foi muito elitizado. Algumas pessoas até eram um pouco mais receptivas comigo, mas a grande maioria me olhava como se eu fosse de outro planeta. Me lembro que, quando eu ia pra sala de aula, muitos vinham até a mim e perguntavam, ironizando, se eu era a professora da turma. Com toda educação do mundo, explicava que era aluna como todos ali. Bem mais jovens, meus colegas tinham entre 18 a 25 anos e eu já tinha 60. Tínhamos diferenças em todos os aspectos.

Finalmente, no fim do ano passado, já com 65, me formei em medicina. A sensação foi a melhor possível. Um misto de emoções! Pensava: ninguém vai mais me humilhar… Posso tudo! Me senti forte, poderosa, imbatível. Eu me reinventei mesmo. De dona de casa reprimida e cheia de filhos, havia me tornado médica. Tinha, enfim, a profissão dos meus sonhos mais remotos.

Minha formatura foi maravilhosa. Acho que fazia tempo que eu não sorria tanto… Basta ver minhas fotos. Só sorrisos, de canto a canto da boca. Acho que desde o nascimento dos meus filhos não me sentia tão feliz, plena e realizada! Não quis participar da festa com os outros alunos por pura falta de grana. Mas ver toda a minha família, meu pai já velhinho, meus irmãos, meus quatro filhos e meus cinco netos, todos ali reunidos para me ver fazendo o juramento à profissão e pegar o meu diploma, não tem preço. Até meu ex marido apareceu para aplaudir o meu sucesso. Quando o vi, dei uma piscadinha de olho discreta para ele e disse: ‘Viu? Consegui’!

Estava em êxtase! Só pensava: ninguém me segura, posso chegar aonde quiser. Vestir aquela beca e segurar aquele diploma depois de 44 longos anos de espera foi indescritível! Eu o dediquei aos meus filhos e ao meu pai, que nunca me deixou desistir e, mesmo anos depois, sempre me lembrava que eu ainda seria uma grande médica!

Assim que terminei o curso, já comecei a trabalhar como médica no programa ‘Mais Médicos’, do Governo Federal. Fiz a prova e passei com uma ótima colocação.Depois de dois anos, recebemos a graduação com a especialização de ‘médico da família’! Atualmente, trabalho na Ilha de Marajó, em Soure, que fica a 83 quilômetros de Belém. A viagem até lá é longa e cheia de percalços. Só de barco, leva duas horas! Vamos de balsa, que é uma embarcação típica da região do Marajó. Fico de segunda a sexta na ilha e volto sábado para Belém, onde moro com meu filho mais novo.

Costumo dizer que trabalho no paraíso! A ilha de Marajó é linda demais e a população que vive ali é incrível! Fui muito bem recebida por todos, como uma rainha! A maioria dos meus pacientes é carente. São funcionários das fazendas ao redor e a população ribeirinha. Tenho uma ótima relação médico-paciente com todos. Sou valorizada como nunca fui na vida. Ali, tratamos de tudo: diabéticos, hipertensos, gestações etc. Também há idosos, crianças, todo tipo de gente. Sinto que eles têm muita confiança em mim e no meu trabalho. Sou muito segura no que faço. É claro que eu ainda estudo todos os dias, procuro sempre me reciclar, me atualizar, leio muito e me sinto capaz.

Pretendo fazer minha especialização em pediatria. Amo crianças! Aprendi que barreiras não existem. Pessoas más, pouco amáveis e acolhedoras até tentam nos barrar, mas eu chuto as pedras do meu caminho e sigo em frente! Sempre que encontro uma mulher perdida aconselho que volte a estudar, por mais difícil que pareça. Não há outro caminho. O estudo é a única herança que ninguém pode nos tirar.

Dificuldades sempre pintam, então temos que saber dribla-las com sabedoria. Só perde ou ganha quem arrisca, quem luta! Quem fica parado nunca vai conhecer o gostinho da vitória. E eu fui lá, me reinventei, lutei com dificuldade, mas venci! Hoje me sinto plena e realizada como mulher e profissional!”

FONTE: MARIE CLAIRE

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