A lenda da “Viúva Machado” que deixou gerações aterrorizadas

Amélia Duarte Machado ( a “viúva Machado”, em fotografia de Argemiro Lima

Os alfarrábios registram uma velha lenda que até hoje causa desconforto nos adultos, quando lembram da experiência de infância, ocasião em que a “Papa-Figo” poderia estar em qualquer esquina ou lugar anunciado pelos mais velhos. Contam que a “Viúva Machado” era uma “Papa-Figo” (ente sobrenatural integrante do folclore de alguns estados do país).

O casarão “temido – Foto: Reprodução/

A lenda diz que a “Viúva Machado” tinha uma doença grave, cujos efeitos desse mal só era amenizado se ela comesse fígado de criança. Portanto, à tardinha, assim que o sol se deitava atrás do belo Potengi, ela se disfarçava e percorria as periferias natalenses atrás de degustar sua “iguaria” preferida. Desse modo atacava a primeira criança que encontrasse brincando em algum lugar. Logo a enfiava num saco e corria para um terreno baldio para saborear o fígado.

Como nós, brasileiros, temos essa tendência a epênteses e suarabacts, logo inventou-se que a “Viúva Machado” comia “figo” de criança, e não “fígado” de criança”. E assim o nome escorreu até pouco tempo. A única façanha que conseguiu ofuscar a lenda, desde sua criação, chama-se “telefones celulares”, pois hoje as crianças não têm mais tempo para nada. Se contar a história, diferente do medo d’outrora, morrerão de rir.
Crianças tinham pavor só de ouvir as mães gritarem: “corram para dentro de casa, senão a “Papa-Figo” te leva, e eu não tô nem aí pra menino teimoso”… “vem pra dentro; ontem a “viúva Machado” levou dois caboré que tavam na rua”… As pobres crianças, decepcionadas por não mais poder deslizar na lama, disparavam para a casa com o coração na boca”.

Particularmente entendo que os bastidores dessa lenda refletem aspectos da formação cultural – e até mesmo educacional nos primórdios da velha Natal. A inocente “Viúva Machado”, ou “Papa-Figo”, servia para amedrontar crianças, e ao mesmo tempo, ensinar que elas deveriam ficar em suas casas, quietinhas”. Era um instrumento de educação. A “Papa-Figo” findava sendo uma espécie de babá imaginária, única a colocar moral nos meninos caningados, que riscavam para as ruas à primeira chance.

A gênese dessa lenda vem justamente de uma senhora real, chamada Amélia Duarte Machado, nascida em Natal em 1881, falecida com cem anos de idade. Ironicamente, viveu bastante se analisada a sua fictícia doença. Terá sido os “figos” das criancinhas esse tônico de longevidade? Ela foi forçada a deixar de lado os modos simplórios, típicos das antigas donas de casa de sua época – para atender ao estilo lorde do marido, um português ricaço, dono de quase tudo da Natal de sua época. Ele adorava festas. Possuía grandes fazendas nos arredores de Natal, Macaíba, São Gonçalo do Amarante e Parnamirim, casas comerciais e outros negócios.

A Amélia, que de fato teria sido exatamente a Amélia da música, teve que se reinventar, tornar uma espécie de “socialite”, pois viu-se no dever de organizar jantares e festas para grandes empresários potiguares e de outros estados e países. E de quando em vez organizava nababescos jantares concorridos para a classe ilustre da velha Natal. Não era dessas anfitriãs falantes, alegres, expressivas ao estilo Nair de Teffé, mas associada ao marido que possuía características mais extrovertidas, desfilava naturalmente na passarela da riqueza natalense de seu tempo.

Parnamirim, município da região metropolitana de Natal, traz na ponta da língua a história de Manoel Machado, pois os livros registram a doação de uma gigantesca área naquele município, onde foi construído o “campo de avião” para receber os aviadores franceses que aportavam por aqui desde 1927. Ali surgiu o “Aeroporto Augusto Severo” e a Base Aérea de Parnamirim, e consequentemente o referido município colado a Natal.

Manoel Machado morreu. Ela teve que assumir o controle dos negócios da família, mas essa condição não era comum para a imagem de uma mulher, principalmente numa Natal provinciana e conservadora. Não se viam mulheres tomando frente de negócios. “Era coisa de homem”. E dona Amélia se revelou uma Margareth Tatcher nos negócios milionários caídos em seu colo da noite para o dia.

Inicialmente alguns comerciantes até se aproximaram dela na tentativa de se aproveitar de algum deslize, e comprar bens da família com valores insignificantes, mas ela surpreendeu a todos, tornando-se tão competente quanto o marido na arte da administração (vejam como a intelectual Nísia Floresta estava certa, pois faltava-lhe apenas o seu direito). Foi a partir daí que a referida lenda foi se formatando lentamente, pois muitos a apontavam como uma mulher má, autoritária, mandona, que judiava dos empregados etc etc etc (tipo uma Ana Jansen). Nesse detalhe há como compará-la, de certo modo, à intelectual potiguar Nísia Floresta (no aspecto de se impor diante de uma sociedade machista e repleta de tabus, que menosprezava o protagonismo da mulher na sociedade). Amélia surpreendeu.

A própria viuvez e o fato de ser obrigada a estar em constante contato com homens, já que não existiam mulheres com tal função, colaborou com a distorção de sua imagem.

O palacete da “Viúva Machado” resiste ao tempo. Intacto. Fica ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos. No cume de um morro que dá vista para o majestoso rio Potengi. Durante muitos anos ninguém passava por ali nem de dia. Nem para remédio.

Igreja do Rosário dos Pretos

Seja como for, a mansão resiste e possui beleza incomum, como mostram as fotografias. Possui gradil e estátuas provenientes da França em estilo “Art Nouveau”. O palacete foi edificado em 1910, quando a Natal experimentava grandes transformações inspiradas na arquitetura e na arte francesa.

Como já mencionei, a imagem construída sobre a “Viúva Machado” se aproxima em alguns aspectos da história de Nísia Floresta, e ajuda-nos a entender o quando o preconceito prejudicou a mulher ao longo da história. Natal também deve pedir desculpas à dona Amélia Duarte Machado…

Pois bem, um detalhe talvez ajude a explicar nem tanto o empoderamento que a acercou da noite para o dia, mas a construção da “Papa-Figo”. Com a morte do marido, ela se fechou de uma hora para outra. Adquiriu para ela as palavras de Gilberto Freyre “mulher só saía de casa para casar, batizar e enterrar”. Como católica, a igreja ficava defronte, portanto tudo o que precisava ficava na porta de casa.

Desse modo ela passou a gerir a fortuna do marido de dentro de sua casa, delegando tarefas aos parentes de extrema confiança. E conseguiu. Visitava as empresas de surpresa. Seu olhar e as poucas palavras que usava, funcionavam como a mais poderosa das empresárias.

O tempo foi passando, e de fato ela adquiriu uma doença rara. Assim contam. Seu crânio experimentou lentamente uma sutil deformação, e consequentemente as orelhas se tornaram maiores. Se isso procede, é possível que ela tenha sofrido de Síndrome de Treacher Collins, distúrbio genético deformador da caixa óssea, inferindo na aparência das orelhas.

Especialistas explicam que a doença deforma as orelhas, pálpebras, as maçãs do rosto, maxilar inferior e superior. Mas é algo externo, sem danos para a sanidade mental da vítima. Então, já velha, Amélia Machado se aquietou enclausurada. Não aparecia nem na janela. Nunca mais pisou na igreja. Isso bastou para que as raras pessoas que a vissem tivessem pavor. Para agravar a situação, alguns empregados deixavam vazar detalhes sobre seus hábitos reclusivos e a aparência deformada. Isso contribuiu para que as lendas chegassem ao ápice.

Mas tudo acaba. Amélia Machado faleceu na década de 1960. A lenda escorreu até meados de 1990. Hoje não é mais usada com o seu sentido original, mas apenas como curiosidade. Espécie de turismo folclórico, se assim posso dizer.

Sempre nutri vontade de conhecer o tão falado palacete. Moro próximo, mas nunca havia ido ali para contemplá-lo, como costumo fazer quando vejo velhos casarões. Creio que não há quem não admire essas casas velhas e belas. Particularmente passo meia hora olhando e analisando cada detalhe. Coisa de amante de velharias. Fui com o meu filho Fídias, o qual se encantou com o visual da “Casa da Viúva Machado”.

De fato é uma bela construção, rica em detalhes e cercada de flores… mas… não posso negar… a imponência e o fato de estar envolta em plantas, é possível sentir uma aura de mistério, fruto da cultura construída em nós sobre os prédios antigos.

Parece que os familiares da “Viúva Machado” não apreciam abrir as portas frontais da residência com frequência. Usam a entrada lateral. Vizinhos contam que raramente eles abrem as janelas. Um empregado que varria a calçada, contou-me, monossilabicamente, que eles não gostam muito que liguem o casarão à velha lenda. Ali ainda residem familiares dos “Machados”.

Parnamirim nasceu com a doação de uma imensa área, por parte do milionário Manoel Machado.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Amélia Machado se tornou a principal fornecedora de equipamentos, ferramentas, serviços e até mesmo com o poder de empregar pessoas conhecidas numa cidade que se tornaria um canteiro de obras, por nome de Parnamirim. Tudo rigorosamente supervisionado pelos militares norte-americanos que exerceram uma influência incomum a Natal desse período.

Fonte: nisiaflorestaporluiscarlosfreire.blogspot.com

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Comentários (14)

  • Nelson Responder

    Não cheguei a participar dessas aventuras.mais avoes e meu pai e tios participaram

    18 de dezembro de 2022 at 19:04
  • maria Eunice roque Tavares Responder

    nossa quem diria que a história era de outro jeito né eu cresci ouvindo isso eu meus irmãos morria de medo dela agora descobri uma história diferente pra mim e uma verdadeira guerreira viu pois sei que essa doença deixar as pessoas assim totalmente desformada

    13 de novembro de 2022 at 19:43
  • Maria Responder

    Nasci e me criei na rua coronel cascudo paralela da rua João Pessoa. Sabia que a viúva Machado morava em frente a igreja católica (matriz) na praça tamandaré. E morria de medo da viúva Machado me pegar para comer meu “figo”, assim como todas as crianças da minha época. Qdo alguém gritava “olhem lá vem a viúva Machado… era uma correria grande de crianças entrando nas suas casas.

    17 de julho de 2022 at 22:26
  • ieneolivguedes@gmail.com Responder

    Qdo criança, tinha verdadeiro pavor da “viúva Machado”, e não associava o “Machado” ao sobrenome e sim ao objeto. E aí, tudo ficava mais nebuloso.
    Bela e ao mesmo tempo, triste história. Parabéns, pelo texto.????

    30 de abril de 2022 at 18:18
  • Icaro Responder

    Muitas dúvida

    24 de agosto de 2021 at 12:31
    • Maria das Graças Barbalho Bezerra Responder

      Muito bem posto o seu texto. Caso pudéssemos voltar no tempo e ele (texto), levado ao conhecimento público, quem sabe as interpretações maldosas, virulentas e insidiosas, não tivessem feito tantos danos morais e caluniosos à uma mulher, só por ser mulher, com competências acima do seu tempo. Uma lástima.

      20 de novembro de 2022 at 12:37
  • Icaro Responder

    Meu comentário é que eu tive dúvida

    24 de agosto de 2021 at 12:29
  • J Responder

    Fui criado na Afonso Pena e convivi com está lenda por muitos anos. “Morria” de medo de me encontrar com a viúva Machado e perder o meu “,figo”

    6 de junho de 2021 at 19:44
  • Anônimo Responder

    Fui criado na Afonso Pena e convivi com está lenda por muitos anos. “Morria” de medo de me encontrar com a viúva Machado e perder o meu “,figo”

    6 de junho de 2021 at 19:43
  • ROMILSON DE LIMA NUNES Responder

    Me assustava muito pois morava ali na Paula barro bem próximo ao palacete que tinha tuas figuras entalhadas a senhora bela e a outra uma velha de orelas enorme,queria nem ver kkkk

    6 de junho de 2021 at 02:10
    • CRISLENON ANSELMO SANTIAGO MACHADO Responder

      Tenho “Machado” em meu sobrenome, mas não sei se tenho algum grau de parentesco com ela.

      18 de outubro de 2022 at 21:44
  • Bianor Aranha Junior Responder

    Isso tudo é uma lenda ela tornou-se empresária com a morte do marido e bem sucedida o que me consta e que não teve filhos e toda a fortuna ficou para João Cláudio Machado que era parente se não me engano sobrinho o famosa João Machado figura muito conhecida em Natal foi presidente da Federação Norteriograndensse de Futebol por muitas décadas e ligou-se muito ao Presidente da CBF João Havelange e ao Presidente da Federação Pernambucana de Futebol Rubens Moreira tio de um amigo meu Fernando Murta Moreira casado com uma prima da minha esposa Maria do Livramento Ferreira Moreira e ele filho de Romildo Moreira irmão de Rubens Moreira e isso que eu tenho conhecimento

    5 de junho de 2021 at 19:01
  • RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES Responder

    Corri muito do papa figo que morava perto da minha casa, em um terreno baldio, numa casinha montada com chapas de flandes! Era um senhor, de cor preta, que não olhava nem de banda. Andava na companhia de um cachorro sarnento… Quando o via já ficava me tremendo de medo. Um dia ele desapareceu (na minha memória)…

    5 de junho de 2021 at 18:03
  • Danniel Montenegro Responder

    Quando criança, nos anos 80, me fizeram muito medo com essa história de Papa Fígo . Minha mãe sempre me disse qie isso não existia e eu assustado, custava acreditar na verdade.

    4 de junho de 2021 at 22:11

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