As estrelas da cidade (Nilo Emerenciano)

André da Rabeca – Fonte: folhadacidade.jor.br

Uma cidade são seus habitantes. Não apenas aqueles transeuntes anônimos, contados com a frieza das estatísticas oficiais. Falo das pessoas com quem a gente convive, às vezes estreitamente, outras apenas se esbarrando pela vida.

Mas principalmente aqueles tipos que compõem o cotidiano da cidade, que passam pela nossa vida, ariscos como estrelas que percorrem o céu. Nesses dias de isolamento social me ocorre que esses tipos populares enriquecem e fazem a história não contada da cidade.

Nos anos 1960 a cidade do Natal era rica em personagens assim. Lembro sem dificuldades ao menos uma dezena. Havia o grupo dos veados (eram chamados assim, não havia ainda a coisa dos LGBTs), bastante variado. Veados valentões, veados mansos, veados divertidos.

Os valentões eram Duruca e Ivanaldo. Ambos negros, altos, desencanados, ousados. Prestavam serviços às mulheres dos cabarés da zona do meretrício. Enfrentavam o preconceito, a malandragem e a polícia com a mesma altivez insolente e assim criaram um histórico de enfrentamentos que os tornaram respeitados até pelos machões. Nazareno também. Dono de um bar à beira-rio, fez fama enfrentando destacamentos das RPs.

Dos divertidos, como não lembrar Velocidade? Estou vendo o seu passinho apertado, miúdo e ligeiro como uma gazela. Era em meu tempo um velhinho franzino, branco, cabelos grisalhos, de língua afiada e boca suja, sempre com uma cesta na mão e um sorriso malicioso no rosto.

Diziam, mas não é verdade, que era o fundador da pederastia em Natal. O professor Leonardo também era figura carimbada. Mais pacato impossível. Era o oposto perfeito de Velocidade. Lembrava um seminarista, sempre discreto e circunspecto. Havia sido em algum momento da sua vida professor de piano. Diziam também que era de boa e tradicional família natalense, por isso o apelido cruel que carregava: Cu de Ouro.  Todos estrelas corajosas e desbravadoras…

Havia ainda o grupo dos que viviam em um mundo que não conseguíamos acessar. Desses, o Conde é o que mais marcou a minha imaginação. O Conde vestia velhas roupas surradas como se fraques fossem. Tinha porte nobre. Quando abordado pela meninada dizia ser o proprietário de quase todos os grandes prédios da cidade e credor dos homens mais ricos.

Os cinemas Rex, Rio Grande e São Luís, por exemplo, eram todos dele, arrendados, claro, a Luís de Barros, esse sim, dono de alguma fortuna. Os prédios do Ipase, Barão do Rio Branco e todos os outros, também lhe pertenciam. Os garotos se divertiam e o Conde se afastava empertigado, passos lentos e firmes, dono de meia cidade, contabilizando suas posses imaginárias. Ah, Conde, estrela inalcançável. Nós respeitávamos a sua altiva e triste figura.

Severina era muito popular. Foi, durante muito tempo, a autonomeada embaixatriz de Natal. Investida do cargo, invadia o palácio do governo e tinha livre acesso ao gabinete do governador. Severina se fazia presente em todos os atos oficiais, ocasiões em que usava uma faixa azul celeste sobre o peito. Fazia-se íntima de todos os políticos, até do então presidenciável Paulo Maluf, o seu preferido. Severina um dia encerrou a sua brilhante carreira.

Fui encontrá-la tempos depois, por acaso, morando em um triste abrigo de idosos, no bairro das Rocas. Cumprimentei-a e ela, feliz, contou das suas joias, de suas fazendas, das suas cabeças de gado. Pediu para que eu fosse portador de um recado para o então ministro Garibaldi Alves. Para ela, as outras velhinhas deviam ser todas suas serviçais. Minha homenagem, Severina, estrela fulgurante, íntima de todos os santos do céu.

Por esse tempo passava no nosso bairro, à noitinha, um casal estranho. Ele era um homem grande e largo. Ela, uma mulher muito baixinha e atarracada, com a cabeça postada diretamente sobre os ombros. Batata: os meninos a chamavam Tinteiro por motivos óbvios. O homem caminhava na frente, calado, e Tinteiro, dois ou três passos atrás, seguia sempre aos resmungos. A garotada não perdoava: “- Banana não tem caroço / tinteiro não tem pescoço!” Tinteiro não se fazia de rogada: despejava palavrões e impropérios a não poder mais e a garotada exultava.

Exultava também quando Vovô, o Barba-Azul, aparecia na rua. Barba Azul, quando sofria o assédio, estacava, tremendo todo o corpo e brandindo um grande e inofensivo porrete. E aí derramava todo o repertório de palavrões possível. Também não era para menos, pois a garotada repetia incansavelmente: “vovô, vou casar com a tua neta!” – e descreviam em pormenores picantes tudo o que iam fazer com a netinha do velho. De onde haviam tirado aquela história? Será que o velho tinha realmente uma neta casadoura? Que estrelas são essas de estranho percurso?

No grupo, digamos assim, da cultura, pontifica Violeta Porra (alusão à artista chilena Violeta Parra). Viera de mais longe, do Chile, provavelmente. Violeta Porra tocava violão pelas praias e bares da cidade em troca de alguns trocados. Era uma figura caricata, meio engraçada, meio triste, um chapéu enorme na cabeça e tranças caídas nos ombros. Como terá vindo parar aqui?

Cantava mal e tocava pior ainda e por isso mesmo tornou-se um sucesso entre a turma dos bares na orla. Uma noite uma banda local chamada Gato Lúdico colocou Violeta Porra no palco do Teatro Alberto Maranhão para uma participação especial. O teatro veio abaixo. Naquela noite viu-se que Violeta Porra, com a sua porra-louquice e suas canções, havia se tornado uma estrela querida de todos.

Com toda certeza a Dama estava presente naquela ocasião, afinal estava sempre em todos os lugares onde acontecia alguma coisa. A Dama era uma senhora idosa que comparecia sempre sozinha a todos os eventos culturais da época, exposições, cinema, vernissages, shows, peças de teatro… Estava sempre muito produzida, elegante, maquiagem carregada, joias em excesso, roupas meio vitorianas.

Formava uma figura que não podia deixar de chamar a atenção. Uma noite, na saída do teatro, ao vê-la só, não resisti e ofereci uma carona. Ela aceitou. E segui muito orgulhoso por conduzir aquela senhora, de alma nobre e espírito jovem, até a sua casa na Cidade Alta; ela falando de si própria, do seu gosto pela arte e cultura. Não registrei muita coisa, pois estava inebriado. Sentia-me, naquela noite, um cocheiro de caleça londrino do século dezenove, conduzindo, respeitosamente, a estrela sua Senhora de volta à casa.

Do teatro Alberto Maranhão outra estrela fugidia invade o nosso céu. Recordo a figura irreverente de Pedrinho, o Moleque Saci. Pedrinho era porteiro do teatro. Preto, baixinho, sorridente, olhos vivos e espertos, era encontrado sempre em dois lugares: no teatro, trabalhando, formal em seu uniforme, ou na Confeitaria Delícia, do português Olívio, bebendo, participando das rodas de conversa com o jaleco desabotoado. Pedrinho era amigo de todos os artistas, jornalistas e intelectuais que frequentavam a confeitaria Delícia.

Devo a Pedrinho o acesso livre ao teatro – ele nos abria a porta lateral – e a tantas peças para as quais não tinha dinheiro nem idade suficientes para entrar.  Nas tardes de sábado Olívio, o português, lavava a confeitaria. Os fregueses se agrupavam em mesas na rua e eram obrigados a usar o banheiro da antiga rodoviária. Em uma dessas tardes, ao atravessar a rua, Pedrinho foi atropelado e deve ter ido ajudar São Pedro, velho e cansado, na portaria do céu. Deve ser aquela estrela que parece me sorrir nas noites de sonho.

Como deixar de fora Maria Rocas-Quintas, acabrunhada estrela das ruas de Natal? Lembrava-me Cabíria, de Fellini. Pernas grossas, bunda grande, desprovida de beleza, Rocas-Quintas era assim chamada porque se fazia presente diariamente no eixo Ribeira – Centro – Alecrim a qualquer hora do dia ou da noite. Abordava os homens na rua oferecendo seus serviços pouco ortodoxos.

Os que topavam eram levados para as casas de recurso das Rocas. Eu era só um menino e imaginava o dia em que, já rapaz, ia poder me deixar conduzir por Maria.  Muitos anos mais tarde uma mulher me dirigiu a palavra: sobressaltei-me. Era Maria Rocas-Quintas que pedia uma ajuda. Impossibilitada pela idade de exercer o seu oficio, Maria mendigava.  Maria, Maria, triste estrela, você conseguiu deixar melancólico o homem que me tornei.

São tantos os anos, são tantas as figuras, as histórias, as estrelas…

Uma cidade somos nós, a sua história, as suas lendas, os seus becos e avenidas, suas ladeiras e docas, suas praças, seus artistas, seu folclore, suas praias, suas crianças e jovens, seus idosos, suas dunas, bares e restaurantes, suas alegrias e tristezas, seus heróis e vilões; é a vida que segue lenta e modorrenta, como o rio Potengi.

Zé Areia, Cambraia, doutor Choque, Lambretinha, Maria Mula Manca, Maria Boa, Grilo Pintor, André da Rabeca, Alberi, Milton Siqueira, Ziu Paiva, onde estão vocês todos? Em qual esquina, em qual beco, em qual constelação? Conversam na Praça das Cocadas? Descem a ladeira em busca dos cabarés da Ribeira? Tomam cervejas nos bares da Tavares de Lira? Meladinhas no boteco do Nazí?

Onde estão todos? Na memória da cidade, nos anais dos botecos, nos livros de Gutenberg Costa, nos “causos” contados nas esquinas, nos arrabaldes do céu? Estão, com certeza, na lembrança dos que guardam, como eu, com cuidado e desvelo, a alma da cidade no coração. Vocês todos são estrelas e formam a grande e brilhante constelação que assinala a abençoada cidade do Natal.

*Nilo Emerenciano  é  Arquiteto, escritor e articulista.

Publicado no Folha da Cidade

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Comentários (5)

  • Carlos Alberto Galvão De Campos Responder

    Fantástico caro Nilo, conheci todas os figurantes mencionados. Lembraria ainda Milton Siqueira, que mirava na ponta do morcego em um minúsculo barraco que ele denominou Vila Almirante Penabotto
    Raimundo ceguinho, sempre acompanhado por sua filha, que, tão logo atingiu a puberdade, foi parar em Rita Louro, lupunar por trás do aero clube. Parabéns pela bela crônica.

    23 de junho de 2022 at 20:53
  • Ederaldo viana Responder

    Muito legal!! muitas figuras aí citadas me recordo. Senti falta de Gasolina e Garapa, ainda menino chamamos de água com açúcar e ele muito invocado dizia MISTURE,MISTURE aí vinha aquele festival de palavrões.kkkkk parabéns ao poeta.

    22 de junho de 2022 at 17:39
  • Samuel Franco Ribeiro Júnior Responder

    Lembranças de Natal doméstico do meu tempo de jovem .

    21 de junho de 2022 at 20:14
    • Ederaldo viana Responder

      Muito legal!! muitas figuras aí citadas me recordo. Senti falta de Gasolina e Garapa, ainda menino chamamos de água com açúcar e ele muito invocado dizia MISTURE,MISTURE aí vinha aquele festival de palavrões.kkkkk parabéns ao poeta.

      22 de junho de 2022 at 17:42
  • Augusto Serrano Responder

    Muito bom caro Escritor!

    21 de junho de 2022 at 18:35

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