Eu e a bola: um conto de amor sem ponto final (Minervino Wanderley)

Foto: Cedida

É claro que existem milhões de caras assim como eu, que foram – e são – apaixonados por uma pelada de futebol. É um xodó antigo.

Creio que os chutes que dei na barriga de minha mãe foram tentativas de fazer um gol, dar um drible, uma cobrança de falta, um pênalti decisivo e por aí vai. Pobre mamãe. Transformei seu útero em um campo de futebol.

E tudo começava com uma bola de meia, confeccionada a partir de uma meia de nylon (normalmente subtraída do grada-roupas de uma mãe), cheia de retalhos, camisetas rasgadas, etc. Depois, dava-se o formato mais ou menos redondo e costurava. Essa era legítima bola artesanal.

Mamãe logo percebeu essa minha predileção e não me lembro de receber presentes de aniversário ou Natal que não fosse uma bola. De plástico, borracha, couro, tanto fazia. A alegria era grande.

Não importava se eu chegasse com os dedos esfolados do “campo” de paralelepípedos, ela tratava com todo o carinho que só uma mãe tem.

Fui um “peladeiro” de primeira linha. Bati bola em muitos campinhos espalhados pelas ruas da Natal de antigamente. De Mãe Luiza à Guarita; das Rocas às Quintas; do Tirol ao Alecrim, lá estava eu.

Querem saber mais? Eu era tão fissurado na bola que adorava brincar com ela sozinho. Aliás, eu, ela e a fértil imaginação, que voava alto.

Na nossa casa tinha um jardim que eu adaptei para um campo de futebol. Lá, ‘joguei’ pela Seleção, Flamengo e Alecrim. Entre dribles em espadas-de-são-jorge, canetas em belas e cuidadas roseiras e chutes de canhota fora do alcance de jarros de camélias, ganhávamos da Itália, Alemanha, Vasco, Fluminense e do ABC e América, é claro.

Nesse período, ainda com nove anos, cheguei a jogar em times organizados. Foi Vem Vem, colega de sala do Sete de Setembro, quem me incetivou. Se não me engano, o primeiro time foi o Tirol Tênis Clube, que depois virou Aero Clube ou vice-versa. Depois pelo Colo-Colo, Paladino, Sete de Setembro e outros colégios e outros times de bairros.

Lembro-me do meu primeiro “contrato”. Eu jogava pela Portuguesa, time da turma do bairro do Alecrim que disputava campeonatos no COBANA e na Vila Naval.

Pois bem. Peguei uma briga com Mequinho, um ala direita craque de bola e saí do time por birra. Fiquei triste, já que os jogos, principalmente na Vila Naval nas manhãs dos domingos, eram maravilhosos.

Ora, uma plateia de meninas bonitas vindas de tudo quanto era lugar – já que eram filhas do pessoal da Marinha e viviam de mudança – estimulava qualquer menino a ser um Pelé. Ficar sem isso e sem o picolé de Dona Margarida era de lascar.

Até que numa sexta-feira à tarde, minha mãe me chamou dizendo que tinha um pessoal querendo falar comigo. O coração acelerou quando vi o treinador e dois jogadores do time da Vila Naval.

Depois dos cumprimentos, o treinador fez a pergunta que eu tanto esperava:

– Quer jogar no time da gente? – antes que eu respondesse ele fez uma oferta:

– Se for, garanto picolé de Dona Margarida à vontade. – só isso já era bem mais do que eu esperava. Mas resolvi ir fundo e propus:

– E a água? – a gente tomava normalmente numa torneira, depois do jogo. A resposta foi uma maravilha:

– Mineral e gelada! – respondeu ele.

Estirei a mão e disse feliz da vida:

– Negócio fechado!

Depois veio a chatice: inventei de fazer um concurso para o BB, passei e, num rasgo de sorte, fui trabalhar em Currais Novos. Ora, lá no Banco trabalhavam Tales e Bazinho, dupla que eu tanto assistia no Sylvio Pedroza e no Palácio dos Esportes. O primeiro pelo América e o segundo no ABC. Em Currais Novos, conheci o também bancário Geraldinho, que também jogava bola, e montamos um bom time.

A partir de então, só joguei pela AABB – isso durou uns vinte anos – e tive uma rápida passagem pelo Alecrim, creio que em 1981, já que a AABB não participou do Metropolitano naquele ano. O treinador era o querido Bel. Velho conhecido desde os tempos do Marista.

Hoje, olhando pelo retrovisor da vida, vejo que poderia até ter marcado mais minha carreira no Futebol de Salão do RN. Tenho autocrítica e sei que jogava bem, que era um canhoto habilidoso, mas também que preferia as serestas do Kazarão ou do Boca da Noite, aos treinos com um bando de marmanjos.

Nisso, eu reconheço minha total irresponsabilidade. Bel e Ferdinando, meus treinadores, que o digam. Mas tudo ficou para trás, encoberto pela fumaça do velho cigarro Carlton.

Agora, beirando os setenta anos, continuo a brincar de jogar bola. Eu e outros teimosos que acordam às cinco da matina para bater pelada na AABB. Acho ótimo encontrar amigos feitos ao longo da vida e me divirto com as confusões sobre faltas e pênaltis não marcados.

Mas nada se compara ao prazer de revê-la. Ela, a bola. Redondinha, linda como sempre. Porém, a danada já não quer muito papo com este coroa. Prefere os caras mais novos, cheios de vigor e que batem nela com a força que eu não tenho mais.

Dona de si, não obedece mais às ordens dadas nos meus chutes de efeito. Parece até que tem vontade própria. Insensível, esqueceu-se do carinho que tive por ela durante anos, chegando até a dormir agarrado nela.

Não passa de uma ingrata, mas eu ainda sou louco por ela!

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Comentários (3)

  • Adailton Albino Responder

    Bacana meu treinador e amigo!!
    Seu texto aglutina, com rara sensibilidade, um pouquinho da vida dos amantes da redonda. Sobretudo daqueles que um dia tiveram que escolher entre ser profissional da bola ou do BB.
    Parabéns!!

    27 de agosto de 2023 at 09:22
  • Roberto Aladim Responder

    belíssimo texto amigo Minerva, parabéns. Abração

    26 de agosto de 2023 at 17:07
  • GILSON DE ASSIS SILVA Responder

    Show de narrativa…
    Era lendo e interpretando os atos mentalmente.
    Lembrei até da bicicleta dada para encantar as meninas na praia de Areia Preta… kkkkkkkkk…
    Caiu de costas e ficou sem ar….
    kkkkkkkkkkkk…. Meu querido AMIGO MINERVINO… Beijo no coração.

    26 de agosto de 2023 at 11:29

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