MÚSICA DE RUA – Por Heraldo Palmeira

Street Horn Player on Washington Square (fotografia David Shankbone – Wikimedia Commons)

Por Heraldo Palmeira

Escrevo no inverno. Como um memorial recente. Correm dias muito frios. Açoitam nosso calor com um isolamento que começou no fim do verão e já atravessou o outono até aqui, sem data para nos trazer uma primavera com flores em cores plenas.

Os dias no bairro nobre estavam correndo diferentes. Reinava um silêncio que parecia novo, como se houvesse um desânimo nos sons invisíveis de sempre. Sem origem clara, sem formas, sem tempo certo. Apenas o sotaque da cidade.

Faltava aquela algazarra cotidiana dos empregados do comércio. O palestrado dos motoristas no ponto de táxi. O vozerio ao redor do balcão da lanchonete da esquina. O tilintar de vidros e alumínios de copos e panelas no boteco preparando o almoço de comida caseira. As buzinas, freadas e arrancadas nos desencontros amarelos entre os verdes e vermelhos dos faróis das esquinas. Tudo o que chamamos de sons urbanos parecia agora matriculado numa escola de etiqueta, estava recolhido em sussurros.

Podia ser o medo, tão humano, do desconhecido espalhado pelos recantos mais escondidos. A saudade dos colegas que perderam empregos e o temor de também engrossar a fila. Ou a falta de assunto imposta pela hegemonia do tema e das vozes dominantes na mídia.

Carros de menos, poucas pessoas pelas calçadas demonstrando pressa alguma. Mascaradas. Quase um clima de filme de ficção científica, embora o cenário fosse o de sempre, as ruas que faziam parte da vida dos moradores e transeuntes costumeiros. As nossas ruas e becos. Becos que, naquela região, eram redutos ainda mais refinados, pela exclusividade.

O quarto era amplo, de fundos. Pela janela, eu via os fundos do casario de uma rua com portão, espécie de vila – outro requinte do lugar –, e de outros prédios da rua de trás da minha. O sossego, que já era tônica antiga por ali, andava ainda mais sossegado. Havia uma calma boa de desfrutar, mas trazia algo como culpa de não fazer nada por obrigação. Eram tempos esquisitos!

Foi dali que assisti a uma live sugerida por um amigo. Não vi apenas olhando a telinha. Estava numa janela adiante o cara que eu via também transmitido pelo mundo virtual. Era como se eu estivesse num making of da vida em curso.

Do meu ponto de observação, eu tinha a solenidade recortada pelo espaço do cristal líquido e o resto de elementos comuns da casa. Como a mulher linda que trocava peças de roupa diante de um espelho enorme fora do alcance da câmera.

Estávamos tendo dias bonitos, arejados e com sol. O inverno veio brando e ficou assim, garantindo amenidade na maior parte do seu período no calendário das quatro estações. Estava cumprindo o riscado previsto pelos meteorologistas. Mas, como tudo e todos naquela travessia, saiu do eixo por alguns dias congelantes.

Nos fins de tarde sempre chegava um som pela janela. Eram instrumentos de sopro. Difícil localizar a origem – havia um ginásio de esportes, dois pequenos clubes e mais um quartel nos arredores. O repertório misturava marchinhas e músicas populares do repertório de bailes.

A manhã do sábado parecia trazer o convite para uma caminhada leve. Por volta das dez, o som dos metais começou a chegar pela janela do quarto, da sala, da área de serviço e da cozinha onde eu terminava de tomar café.

O repertório estava repleto de Roberto Carlos, Sinatra, bossa nova e standards americanos e italianos. Aplausos e, aqui e ali, uma voz ou outra gritava “bravo!”. A quantidade de prédios da metrópole gerava a propagação que trazia a impressão de um som em 360 graus.

Havia uma certa falta de equilíbrio nos volumes dos instrumentos nas execuções, muitas notas pulavam dos locais onde deveriam estar. Pensando bem… E daí?

Caminhei sem pressa, como todo mundo. Mascarado! Dobrei a esquina da rua de trás da minha e o som da música aumentou de volume. Mais um pouco e lá estavam dois músicos. Sim, a reverberação pelos prédios transmitia uma sonoridade multiplicada e falsamente mais numerosa do que a real origem dela.

Muitos idosos estavam sentados nas áreas livres e ajardinadas dos seus prédios elegantes. Além da música, recebiam suas boas doses de vitamina D diretas do sol, com os cuidadores sempre a postos.

Parei um pouco, estava fácil respeitar o distanciamento social. Meia dúzia de mulheres de várias idades e um senhorzinho assistiam mais de perto. Pessoas passavam passeando com seus cães, uma ou outra mãe ou babá empurrando carrinho de criança. Os porteiros em suas cabines de isolamento eterno, indefectíveis – impossível saber se estavam gostando ou não. A galera da lanchonete em conversa mínima pela calçada, aguardando os clientes improváveis daquele período. Um deles soltando baforadas preguiçosas de um cigarro interminável…

Uma pequena caixa de papelão forrada com pano preto, esparramada diante dos músicos, era o caixa das gorjetas. Fiquei apenas três ou quatro músicas, deixei um trocado e fui embora debaixo de agradecimentos cordiais. Repetimos o obrigatório “cuide-se!” daqueles tempos.

O vento passava ameno pelas folhas das muitas árvores. Talvez quisesse espalhar as sombras frondosas para emprestar natureza ao concreto predominante.

Atravessei a rua. Escorado na banca de jornal, um homenzinho concentrado em pensamentos íntimos com sua garrafinha long neck verde, como se houvesse nela alguma dose de esperança. Completei o meu circuito de quarteirões caminhados e voltei para casa a tempo do almoço.

Naqueles dias, os telejornais diziam coisas e emitiam opiniões de um extremo ao outro. Assim chegava o panorama atualizado do mundo tão cheio de vieses quanto nós.

Um refugiado ruandês confessara ter colocado fogo na catedral de São Pedro e São Paulo, em Nantes, um tesouro gótico da capital dos duques na França. Ele havia sido acolhido como voluntário e, ironia, trabalhava na segurança da igreja. Apesar da rapidez dos bombeiros, o fogo conseguiu transformar vitrais e o órgão musical do século 16 em cacos, cinzas e metais retorcidos.

Havia uma tal de ressurreição dos drive-ins como forma de tentar salvar o negócio dos cinemas, ainda paralisado. Sequer respeitavam a memória dos frequentadores pioneiros, que jamais iriam a um drive-in com família e até cachorro dentro do carro. Aliás, ninguém lembra direito dos filmes que eram exibidos naquelas telonas no meio do tempo, porque o que rolava dentro dos carros é que era coisa de cinema! Aquilo que estavam oferecendo agora, era, no máximo, cinema ao ar livre.

Uma notícia animadora dava conta da retomada do mercado da construção civil, que sempre foi um sinalizador de bons ventos na economia. Mais adiante, alguns números positivos de outros setores soaram quase inacreditáveis para aquele momento de paralisação quase completa.

Foi muito bom ouvir que as pessoas passaram a comprar mais e mais livros. Os canais de comércio eletrônico tiveram elevada participação nesse boom inesperado, o que reanimou o cenário moribundo das editoras. O detalhe interessante é que os clássicos lideraram o ranking das vendas digitais.

Especialistas apareceram com duas explicações para o fenômeno. 1) As pessoas voltaram para suas leituras fundamentais, os livros que as fizeram felizes no passado – como se buscassem reativar ligações afetivas com outros tempos das próprias vidas. 2) Elas arranjaram tempo para ler, até porque o isolamento social deu cabo da desculpa esfarrapada de falta de tempo.

O relevante mesmo é que o hábito da leitura parece ter conquistado espaço no cotidiano de muita gente, o que se escreve como alento. Um sopro de vida para o mundo de papel e tinta, que sobreviveu aos livros digitais, mas testemunhou as grandes livrarias sumindo dos seus endereços tradicionais bem antes da pandemia.

Em pouco tempo, a ladainha das notícias ruins subiu ao altar. Famílias sendo despejadas de ocupações “imobiliárias”, a partir de sentenças de reintegração de posse. Gente que até há pouco estava dentro das nossas casas como diarista, nos atendia com distinção às mesas de restaurantes, trazia nossas entregas até altas horas… Primeiro os tratores esmagando tudo – inclusive os utensílios e pertences de famílias inteiras –, para dar lugar ao fogo botado queimando aqueles barracos já miseráveis desde a entrega das chaves – talvez fossem apenas trancas improvisadas.

Aquelas chamas em seu dourado mortal, os olhares desolados, o choro de pessoas que eram noviças naquele ambiente – eram aquelas mesmas que foram atiradas na rua por uma crise potencializada pela qualidade de políticos ocupados em atirar culpas e afrontar nossa cidadania.

Restou àqueles infelizes mesmerizados pelo fogo os tantos silêncios impotentes diante da força bruta da Justiça do establishment, televisionada ao vivo e em cores como nota incendiária no rodapé da nossa absoluta falência.

Contrapondo nossa pomposa empáfia de remediados da tal “sociedade organizada”, a solidariedade comovente que floresce nas catástrofes, aparentemente compreensível apenas para quem tem as mesmas cicatrizes profundas das desventuras.

As imagens iam mostrando famílias dividindo o pouco mais ou nada de que dispunham com aqueles desabrigados desconhecidos, recém chegados à miséria. A ponto de compartilharem o espaço quase inexistente com quem acabara de perder outro espaço inexistente. E o frio e a chuva fina escreviam o verso final daquela poesia cruel do absurdo. Arrebatadora!

Comecei a fitar a TV da cozinha sem ver e ouvir mais nada. Era apenas uma imagem perdida, como se eu tivesse acionado um mecanismo de defesa, calado a overdose de falas desnecessárias. Preferi não ser invadido por aquele mundo de frases feitas.

Eu andava me perguntando, com cada vez mais insistência, de que valia termos chegado a pontos quase inacreditáveis de desenvolvimento tecnológico, de inteligência artificial, de internet das coisas, de pensar em viagens tripuladas a Marte e o escambau, de viver chafurdando outros planetas e o infinito sideral com nossas sondas exploradoras se mal conseguimos nos entender e compreender que o desafio de viver bem é coletivo, não dispensa nenhum de nós.

Tanto que o mundo seguia no abre e fecha, isola e aglomera. Um retrato de que não conseguimos um mínimo de organização para enfrentar um vírus que parece ter estabelecido uma estreita ligação com padrões de comportamento.

Não bastasse o problema real, a pandemia, explodir nossos egoísmos, nossa ausência de solidariedade e sentido coletivo, nulidades ganharam voz e começaram a nos cansar com tantas bobagens ditas como verdades absolutas. Gente que nem sabe localizar os pontos cardeais danou-se a dar vereditos, escrever os pontos finais da própria irrelevância.

Num dos dias mais frios do ano, saí com meu querido taxista amigo e atravessei um bom trecho da grande cidade. Depois da (minha) obrigação, paramos num daqueles impagáveis botecos que ele e eu visitamos de vez em quando – às vezes, apenas combinamos, sempre na hora do almoço. A galinhada estava espetacular! E deixamos a rabada com agrião reservada para a semana seguinte.

Estávamos apenas vivendo nossas aflições de forma mais amena, valorizando as humanidades que nos caracterizam. Tomando todos os cuidados, mas tentando viver coisas boas. Como são essas coisas simples, esses encontros sem qualquer solenidade que se tornam encantadores, indispensáveis, porque revigoram. Nos dão o tom para não perder o tom.

É de esperar que tenhamos novos cuidados doravante. E vamos ter mesmo. Mas, sem ilusões, por favor. Não vamos abrir mão de nosso jeito de ser, continuaremos humanos. Não adianta fantasiar, não seremos passados a limpo como holografias humanoides mal acabadas. Apenas riremos dos jecas que criaram verdadeiros manuais para o pós-pandemia, que vão ficando cada vez mais parecidos com os teóricos do bug do milênio.

Estamos esgotados dessa conversa de antiga normalidade e novo normal. Das figuras devotas da seita “podecrê” sempre em looping naquele mantra de que pessoas mudam por efeitos cósmicos. Esses chatonildos holísticos parecem continuar com os pés lambuzados pelo lamaçal de Woodstock, procurando o caminho de volta até hoje, sempre alheios à realidade e relativizando as dores do mundo. Tudo o que queremos é nossas vidas de volta, nada mais. E seguiremos sendo os mesmos imperfeitos que somos desde que o mundo é mundo.

Vamos continuar montando nosso prato do almoço do jeito que sempre fizemos, arroz em baixo e feijão em cima. Ou o contrário. Ou lado a lado. Até poderemos inserir novas variáveis aos nossos costumes, mas serão absorvidas nos hábitos num piscar de olhos. Seguiremos em busca das nossas zonas de conforto trilhando o consagrado individualismo digital, e o batalhão de escravos solitários das redes sociais não deverá parar de crescer.

Como bem escreveu o amigo jornalista Jânio Vidal, “Na Idade Média, as pessoas eram queimadas em fogueiras por suas ideias, crenças ou comportamento. No século passado, governos ditatoriais e tirânicos queimavam em fogueiras os livros daqueles que viam como ameaça ou não seguiam a sua ideologia. Nos dias atuais, mesmo nas democracias, fortes estruturas são montadas para queimar nas redes sociais a reputação de quem estiver na oposição”.

É o assunto do momento, o tal “cancelamento digital”. Triste humanidade, cada vez mais sufocada por tantas ferramentas e informações, escolhendo majoritariamente o negativo talvez por não saber o que fazer de positivo com tudo isso. É o reflexo da ignorância que está cada vez mais à vontade em todos os lugares, criando um mar de “marias vão com as outras”. Pior, crentes que estão abafando!

Precisamos evitar o truque revelado pelo escritor Tomasi di Lampedusa em seu romance O Leopardo, que soa como metáfora da nossa realidade: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.

É recomendável dar ouvidos ao filósofo Norberto Bobbio: “Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde ela está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la por nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum”.

Labirinto da Catedral de Chartres (imagem Google.com.au)

Chega de andar em círculos!

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