Não é apenas futebol (Rodrigo Salem)

Série documental da Netflix destrincha de forma brilhante e detalhada a maior tragédia enfrentada pelo Flamengo.

Às vésperas da decisão da Taça Libertadores, em Lima, Peru, eu jantava com alguns amigos rubro-negros que estavam no local a trabalho como jornalistas em diferentes áreas.

Para mim, era só alegria, sem nenhuma ligação profissional com o que acontecia ao meu redor. Me defendia dos torcedores argentinos que se aproximavam cantando provocações divertidas ao redor da nossa mesa e cumprimentava outros flamenguistas.

Até que um dos meus amigos percebeu um certo diretor da antiga diretoria do clube no mesmo restaurante.

Não me recordo a função do executivo, mas era alta e ligada ao Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo que, meses antes, em 8 de fevereiro de 2019, foi palco de uma das maiores tragédias do futebol brasileiro e a maior do Flamengo: a morte de 10 crianças das divisões de base do clube em um incêndio no alojamento formado por contêineres sem as devidas permissões legais.

Esse colega ficou indignado. “Como esse canalha tem a cara de pau de estar aqui?” O clima mudou. E com razão. Mesmo cansado depois de um dia inteiro de trabalho e com o prato para o jantar ali na mesa, ele se levantou e foi cobrar o executivo sobre os pedidos de entrevista nunca respondidos.

Isso numa noite que antecedia o jogo mais importante do Flamengo em 40 anos. Uma festa. Não importa. A cobrança é justa e compreensível. Fiquei impressionado até. É um pequeno, mas um testemunho pessoal de quanto a morte daqueles meninos assombra um flamenguista que não se tornou sociopata clubista -sim, existem muitos e em qualquer torcida.

Mas deveria assombrar ainda mais.

E “O Ninho: Futebol & Tragédia”, documentário em três partes da Netflix com direção geral de Pedro Asberg, assume essa missão de modo exemplar.

A minissérie é de uma sobriedade rara e toda fundamentada em um trabalho jornalístico do UOL que não abre espaços para teorias insanas ou roteirizadas sensacionalistas.

É tão bem executada que deveria ser vista por torcedores de todos os times.

“O Ninho: Futebol & Tragédia” assume linhas de apoio essenciais: entrevistas com as famílias dos garotos mortos, declarações de jornalistas esportivos, ex-jogadores ligados ao Flamengo, o segurança do Ninho na fatídica noite e até um dos garotos sobreviventes.

O documentário investe também em uma pequena dramatização para ilustrar momentos que são impossíveis de exibir, como um passo a passo do que aconteceu em 8 de fevereiro de 2019. A escolha não incomoda, porque o material ao seu redor é ponderado e bem editado, sem afetações além da emoção básica da história.

E olhe que poderia muito bem ir para qualquer um destes lados.

O episódio inicial até evita a ideia de antagonista das diretorias do Flamengo. Mas, em determinado ponto, fica mais evidente quem são: a equipe atual de executivos do clube, que tomou posse um mês antes da tragédia, por sua frieza inexplicável na condução das consequências (humanas e legais) do processo, e a antiga, que, como é comprovado por matérias e pela série, sabia dos perigos e da má execução daqueles alojamentos e seria responsável diretamente pelo acontecido.

E bate na nossa cara como ninguém ainda foi responsabilizado pela morte destes meninos que estavam sob a guarda do Flamengo. Elimina discurso clubista de “paguem as famílias” (só uma não foi indenizada ainda), mas mostra como a justiça no Brasil caminha devagar e livre. Dinheiro não paga a vida de ninguém. Quem fala isso, não se preocupa com justiça, mas em ferir o outro com um golpe baixo.

Não que certas pessoas dessas diretorias não mereçam.

E vários destes personagens nefastos voltam ao olhar público em breve, pois as eleições no Flamengo estão marcadas para novembro.

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