O DESCANSO DO SOL (Heraldo Palmeira)

//FOTO: HERALDO PALMEIRA//

As enormes janelas de vidro estavam ali há anos sobre as mesmas paredes, descortinando a vista. Não sei se de tirar ou de dar fôlego, mas colocando diante de mim um arquivo vivo do tempo da infância e redivivo tantas vezes nos anos seguintes.

Escolhi a mesa do canto encostada na vidraça entreaberta. Garantia de brisa fresca do fim de tarde do sertão e cento e oitenta graus de paisagem com lajeiros, caatinga, passarada e água doce represada. Tudo sob o olhar silencioso da cordilheira de serrotes de pedras que terminou apelidando minha terra de Cidade das Cordilheiras.

Sim, estou no alto de um dos serrotes com aquele desfiladeiro ocupado por um mar de água doce – somos exagerados – ali abaixo. A grande parede curva de concreto fechou a garganta entre dois grandes serrotes e criou o açude Gargalheiras, ponto turístico e nossa grande riqueza quando a terra fica estorricada pela seca.

Uma das minhas grandes aventuras em tempos idos foi atravessar a parede de concreto por dentro, numa escadaria infinita e úmida em descida até as profundezas e depois subida (e vice-versa no retorno), onde pequenos lagartos, pássaros em seus ninhos escondidos, insetos e até serpentes transitam como se estivessem em casa.

Apesar das águas abundantes trazidas na última estação das chuvas, o nível do grande açude, que os de outras bandas da Terra tratam por represa, está por volta da metade apenas. É mesmo muito leito para inundar e não costumamos ter dilúvios no semiárido nordestino, onde o clima é quase sempre quente e seco e vamos aprendendo desde cedo a conviver com o tal do mormaço.

Aqui chamamos de inverno o período em que as chuvas caem driblando a regularidade da ausência. Elas chegam quase sempre no verão e no outono – não interessa, é nosso inverno e pronto! Às vezes, passam anos sem dar sinal, formando a seca que ganhou fama dolorosa na literatura, na música, no teatro, no cinema, nas artes plásticas e nos desvios de verbas oficiais. Uma realidade cruel que gerou gerações de retirantes, indústria de fisiologismo político e segue aguardando o milagre de uma tal transposição do São Francisco prometida desde os tempos do imperador Pedro II.

Nem eu nem o vento estamos interessados agora nesses fenômenos da natureza ou nas desditas humanas. Preferimos a brisa sempre presente no cimo da colina, aqui e acolá com um rugido ou um silvo, como se fosse exercício vocal passeando pelas extensões graves, médias e agudas. Aqui e acolá ele desce veloz até à lâmina da água e mexe nela, como uma travessura de quem faz cócegas por brincadeira. Exímio, não mergulha, não arrisca se afogar.

Lá longe um cristão atravessa de um lado para outro remando sua canoa. É o fim do dia de labuta e a volta para casa levando provisões trazidas de alguma bodega da cidade, que em outros lugares aprenderam a tratar por mercadinho.

Foi preciso aprender a conviver em paz com as mudernidades, esses vernizes aplicados aos substantivos comuns que aprendemos com os antepassados. Foi preciso aprender a não entrar em choque ao encontrar pela estrada meninos vaqueiros cavalgando vestidos em seus couros inferiores apenas – os gibões superiores substituídos por camisetas de algodão. Sem contar os lendários chapéus de couro trocados por bonés de tecido com a logomarca de um time nova-iorquino de beisebol – a pirataria, tratada coniventemente como “indústria de réplicas”, não alisa, seus tentáculos enormes estão em toda parte.

Uma disrupção – olhe eu aí metendo verniz substantivo na ruptura dos costumes – que também permite àqueles meninos chicotear smartphones no alto das selas. Seria mesmo surpresa encontrar um belo aplicativo de GPS instalado ou um chip inserido num cavalo mais valioso? É… as antenas precisam estar ligadas, há um tal de georreferenciamento demarcando os aboios de hoje em dia.

Alguns poucos quilômetros adiante, na planície, o nosso arraial querido está enfeitado por conta da Festa de Agosto, montada a cada ano em honra da padroeira – aqui somos descendentes de índios nativos denominados “caboclos bravos”, europeus colonizadores, judeus sefarditas (da península Ibérica) em fuga da Santa Inquisição, e ainda temos o toque materno de Nossa Senhora da Guia.

Não há imodéstia, é apenas telurismo quando dizemos “A Festa de Nossa Senhora da Guia é a melhor festa do mundo. Viva Nossa Senhora da Guia!”. Fica ainda mais simbólico dito por Gata, o músico decano da Filarmônica Maestro Felinto Lúcio Dantas, verdadeiro doutor do ritmo, grande seresteiro, tirador de onda profissional e uma espécie de alegria ambulante da cidade, porque, ao fim, ele acrescenta “E me dê licença!” como uma vinheta de assinatura.

Não há pedantismo quando digo que já vi muitos pôres do sol por aí. Os de Colonia del Sacramento, praia do Jacaré, Ouro Preto, Punta Ballena, Nazaré, Arpoador, Key West, serra do Caraça, San Francisco, serra da Mantiqueira ficaram inesquecíveis na memória de viajante. Mas tenho o meu, também inesquecível e que posso renovar todos os anos, quando me retiro aqui, em devoção à padroeira mãe da minha fé – cuja matriz acabou de ser elevada à dignidade de basílica menor pelo papa, mais um motivo para estufar o peito!

É lá onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada e as melhores expressões da nossa devoção. É cá nas alturas da minha colina que louvo o Sol do fim da tarde, indo embora sem querer ir, enquanto o vento, senhor das cordilheiras, se apresenta em rugidos e silvos trazendo bandos de pássaros para fazer algazarra nas ramadas da caatinga.

Sim, existem pôres do sol majestosos pelo meio do mundo crentes que são os mais bonitos de todos! Tudo bem, não há sentido em contrariar os vaidosos, todo narciso acha feio o que não é espelho.

Acredite quando digo que até hoje não encontrei nenhum pôr do sol que me desse de presente as melhores memórias da infância, inclusive com bandos de galos-de-campina que meu pai adorava e de concrizes que eram paixão da minha mãe. E nem me importo quando aplicam vernizes aos nossos substantivos para chamá-los de cardeais e corrupiões.

Agora sinto saudade e preguiça, o lusco-fusco está deixando minhas letras sonolentas e tudo ao redor em meia-tinta. Já está a caminho uma noite envolta em silêncio e escuridão, um grande benefício para a alma e que anda cada vez mais raro num mundo que resolveu imitar o Sol e ficar acordado o tempo todo.

O astro rei, mais sábio, aliou-se com a Lua e finge que dorme na noite de um lado do mundo enquanto brilha em dia na outra banda da Terra. Assim, inventou nascente e poente e dia e noite para reinar como se não houvesse amanhã.

Amanhã, talvez eu esteja aqui esperando o Sol chegar pelo outro lado do horizonte. Amanhã, talvez eu apenas chegue aonde está o dia eterno do Sol, depois de viajar a noite inteira no meu sono enquanto o mundo gira e eu não consigo ficar parado no tempo. Amanhã, talvez haja só a lembrança de ontem e a expectativa do futuro. Amanhã, talvez…

Trechos de Cálix bento (Tavinho Moura) e Sampa (Caetano Veloso) citados no texto.

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