“Pra reler em tempo de pandemia” – O médico e escritor José Delfino alivia a tensão que nos ronda, contando-nos essa história ocorrida nas terras de Shakespeare.

Por José Delfino
Aconteceu há exatos quarenta e dois anos. Sobrevivíamos na Inglaterra eu, minha mulher e três filhos com os minguados cruzeiros da UFRN, convertidos em Libras Esterlinas , em troca de um PhD. Do bolso lembro bem, da noite também: chovia a cântaros, o frio gelava os ossos. Do local nem tanto, mas recordo uma lareira em brasa , uma mesa retangular, a toalha alvíssima. Ao redor um silêncio sepulcral, pois – engraçado – Inglês não fala em restaurante , só nos pubs a verborréia desenfreada predomina. Ao nosso lado um educado garçom de meia idade, meio careca, empertigado, impassível, imune às paixões humanas. Com a garrafa inclinada entre as mãos facilitando a visualização do rótulo, sugeria austero:
– This one I strongly recommend . Expensive, Sir ,but perfect !
Escolado, até então, em inúmeros goles de cachaça “Rainha” de Bananeiras, minha cara de idiota indecisão possivelmente o incitou: -“ I’m afraid you should try it. By all means, Sir”. Sua aparente atitude de superioridade anglo-saxã provocou o meu revide, o que fiz a seguir, sem medir conseqüências.
Um cheirinho de amador no bordo do cálice e um ligeiro gole. A bem da verdade, a coisa começou muito acima da garganta: vermelho escuro, cheiroso, encorpado, musculoso, como diria Dr. Elmano. De lombra induzida logo após, lógico ,pois começávamos a batalha de estômago vazio .
Sorvi lentamente, refreando uma avidez falsamente instintiva. Suave e sedosa, a fera tocou meus lábios, subindo lentamente ao céu da boca. Nele, a felicidade filtrada em doçura juntou-se a um desbragado estalar de língua seguido de um incompreensível e sonoro “ eita , porra ! ” imediatamente equilibrado por um quase imperceptível e educado suspiro de Margot.
Acompanhando um carneiro da Nova Zelândia no molho de agrião, detonamos a primeira garrafa. A segunda deveu-se mais àquela sensação enganosa de poder e à ilusão de riqueza que o vinho dá: o prazer aberto ao infinito.
O deleite da abundância esbanjada e a desordem financeira subseqüente nos fizeram retornar à original condição de “working class”. Por quase um ano só nos permitimos degustar “plonk” a mais ou menos uma libra esterlina, a garrafa de três litros.
Foi uma única vez (aliás, duas), mas valeu. Continuo alimentando o ritual de sabedoria e espera de uma satisfação semelhante que talvez não vá mais se repetir.
Comparados a ele, os demais até hoje , induzem um prazer menor. Parecem cada vez mais anódinos, deixam apenas a impressão física de um frouxo amolecimento das panturrilhas.
Château Rayas, cem por cento uva Grenache, envelhecido.Talvez o melhor e mais requintado Châteauneuf-du-Pape do sul de Rhône. Contei para Elmano, renomano esculápio, liso à época, que parece que gostou do papo e alguns anos após me disse lá em Ari: ” Comprei, degustei e concordo , Zedelfino “. Nem me convidou para repetir o feito de graça. Filho da puta ingrato!
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Comentário (1)

  • Manoel de Oliveira Cavalcanti Neto Responder

    Bela crônica, uma experiência marcante, mas tirou de letra com o Chateau Rayas, que é para poucos. Parabéns!

    8 de junho de 2020 at 10:07

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