Turista demais é veneno (Heraldo Palmeira)

Imagem: JamesDeMers/Pixabay

O turismo é uma das maiores indústrias do planeta, com grande capacidade de incrementar comércio, negócios e gerar empregos.

Por isso, adquiriu importância fundamental no sistema econômico de cidades, regiões e países, muitas vezes como atividade principal, e as previsões apontam que deverá representar 11,6% da economia global até 2033.

Ao mesmo tempo, muitos dos locais de grande fluxo estão sufocados com a quantidade de turistas e um volume cada vez maior de problemas que eles também trazem e deixam para trás quando vão embora.

Muitas vezes, os incômodos permanecem tolerados até o ponto em que a vida dos moradores começa a sofrer consequências difíceis de contornar: preços exorbitantes mesmo para produtos e serviços básicos, ruas lotadas, filas intermináveis e impossibilidade de desfrutar da própria cidade.

Dados da Organização Mundial do Turismo mostram que 25 milhões de pessoas se movimentaram como turistas internacionais em 1950. O número saltou para 1,3 bilhão em 2017, avançou para 1,5 bilhão em 2019 e as previsões apontam para 1,8 bilhão em 2030. Ou seja, a situação de vários destinos deverá piorar.

Não se pode afirmar que já exista um movimento de animosidade contra os visitantes, mas é preciso entender que a maioria desses lugares recebe uma enorme quantidade de gente que está apenas de passagem.

Tentar causar o mínimo de incômodo para a vida dos locais é um bom princípio de civilidade que tende a facilitar a convivência compulsória. Um caminho para evitar o que alguns analistas começam a anotar como “turismofobia”, um sentimento preliminar de rejeição aos turistas.

Um exemplo é a cidadezinha de Pomfret, no estado norte-americano de Vermont. A partir de setembro, o outono no hemisfério norte dá à vegetação local tons que vão do verde ao alaranjado. Com isso, o lugarejo que é lindo fica irresistível, e todos os anos os cerca de 1 mil habitantes se acostumaram a receber turistas.

Mike Doten, dono de uma fazenda de 32 hectares, convivia bem com os visitantes sazonais que vinham apreciar o colorido da folhagem. Eram, na maioria, fotógrafos profissionais e simples amantes da natureza, que ocupavam as pousadas da região.

A partir de 2018, a cidadezinha começou a ficar muito conhecida nas redes sociais e suas imagens impressionantes começaram a atrair cada vez mais gente e a situação mudou completamente.

De repente, as estradinhas rurais de terra começaram a ficar lotadas com veículos grandes e os visitantes passaram a invadir as propriedades para realizar piqueniques e subir nas marquises das casas munidos de drones e outros equipamentos para captar imagens.

Não satisfeitos, transformaram a paisagem em depósito de lixo e excrementos humanos e de animais de estimação.

Em entrevista ao jornal Boston Globe, o fazendeiro não poupou queixas: “Foi demais, está muito lotado. Antes eram mais bem-educados, alguma coisa tinha de ser feita”.

A prefeitura considerou que a situação ultrapassou o incômodo e começou a gerar riscos à segurança e ao bem-estar coletivo. Por isso, adotou uma solução radical: fechou a Cloudland Road, estrada que leva à cidade, limitando o acesso apenas aos moradores.

O bloqueio está em vigor de 23 de setembro a 15 de outubro, as três semanas que registram o pico do fluxo turístico. “Nós respeitamos as necessidades da comunidade. Não parece mais haver os limites que costumavam existir. Direcionamos as pessoas para outros locais bonitos. Há muitos deles em Vermont”, explicou Beth Finlayson, diretora executiva da Câmara de Comércio local.

Situações semelhantes ocorrem em diversos pontos do mundo, bem mais famosos e experimentados como destinos turísticos. Mesmo que os números globais ainda não tenham recuperado a posição pré-pandemia, o setor está em franca recuperação.

Em 2022, foram quase 1 bilhão de pessoas fazendo turismo internacional e 2023 já registra um crescimento de 43% – de janeiro a julho mais de 700 milhões de viajantes zanzaram entre países.

As consequências dessa retomada chegam junto com os visitantes. É um cenário compreensível, já que a infraestrutura da maioria desses lugares não foi projetada para suportar uma quantidade crescente de visitantes.

Esse tipo de situação cunhou a expressão “overtourism” (sobreturismo, saturação de turistas) há pouco mais de uma década para traduzir o efeito negativo que o excesso de turistas tem sobre as cidades, marcos históricos, paisagens e vida dos moradores. E a Europa é uma das mais atingidas.

Agora, residentes e governos dos destinos mais procurados começam a esboçar reações protecionistas, criando proibições, restrições, taxas de entrada, sistemas de turnos, multas e até campanhas de desencorajamento tentando diminuir o fluxo de visitantes.

“Cidades antes tranquilas, agora enfrentam uma invasão de turistas, o que pode trazer problemas ambientais, de infraestrutura e conflitos sociais”, diz Lúcia Silveira Santos, doutoranda em Turismo da USP.

Ela também acredita que, além das autoridades locais, os viajantes têm papel fundamental na promoção de um turismo sustentável. “Como viajantes, também desempenhamos um papel fundamental. Ao escolher destinos menos conhecidos, respeitar a cultura local, optar por meios de transporte sustentáveis e apoiar pequenas empresas locais, podemos contribuir para a redução do overtourism e promover um turismo mais consciente”, afirmou.

Assim como Pomfret, lugarejos europeus são invadidos por multidões. Em 2019, Hallstatt, uma deslumbrante aldeia austríaca de 800 habitantes, recebeu 1,2 milhão de visitantes.

Com esse fluxo completamente desproporcional, os moradores bloquearam o túnel de acesso principal empunhando placas de protesto contra aquele tipo de invasão Passo seguinte, exigiram a imposição de número de visitantes diários e horários de chegada dos grupos.

Dubrovnik, Croácia (41 mil habitantes) foi visitada por 1,4 milhão de turistas, obrigando o governo local a restringir o número de navios (alguns com 4 mil passageiros) autorizados a aportar na cidade por dia.

Noutro patamar geopolítico e com problemas ainda maiores, cidades consagradas no turismo internacional já implementaram medidas especiais para combater o overtourism, inclusive restringindo o acesso a pontos de grande interesse.

Veneza, Itália (50 mil habitantes e 12 milhões de visitantes anuais) viu os problemas se avolumarem porque turistas lotam a cidade praticamente o ano inteiro, mantendo as ruas e locais turísticos sempre cheios e os preços de tudo muito acima do resto do país.

Outro problema grave, já resolvido, era a rota de grandes navios de cruzeiro pelo canal da Giudecca até a Estação Marítima, onde atracavam ao largo do centro histórico.

Desde 2012, a UNESCO passou a considerar a possibilidade de incluir Veneza na lista de patrimônios da humanidade em risco. É importante registrar que uma petição assinada por mais de 4 mil moradores foi encaminhada à diretora-geral da instituição Audrey Azoulay e mais 21 membros do Comitê do Patrimônio Mundial defendendo a inclusão.

“A Veneza que tantos viajantes, livros e filmes contaram e fizeram o mundo inteiro amar está desaparecendo. A cidade hoje é cada vez mais atingida por massas de turistas que obstruem suas ruas, pontes e transportes públicos, colocando em risco a segurança das pessoas”, alertava o documento.

A ameaça surtiu efeito. Além de estabelecer taxas individuais de entrada na cidade e cobrar ingressos para determinadas áreas públicas antes gratuitas, o governo transferiu os locais da operação dos navios.

Para deixar claro que o turismo não era visto como inimigo, mas um problema real a ser administrado, as autoridades estabeleceram no mesmo decreto das medidas uma série de compensações financeiras para as companhias de navegação, gestor portuário e outros beneficiários da atividade.

Finalmente, em reunião do Comitê do Patrimônio Mundial realizada em Riad, Arábia Saudita (dia 14), Veneza foi retirada da lista de patrimônios em risco e mantém sua condição de Patrimônio Mundial, classificação de grande valor para a indústria do turismo.

Amsterdã, Holanda (cerca de 800 mil habitantes, recebe mais de 1 milhão de turistas todos os meses) também fechou um terminal de navios de cruzeiro. Já o bairro De Wallen – conhecido como Red Light District e famoso pela liberalidade nos costumes –, teve revogado o consumo livre de cannabis pelas ruas. Em outra frente, as autoridades emitiram um pedido para que homens jovens britânicos não mais visitassem a cidade, em razão da má conduta que incluíam em seu pacote de turismo.

Outras cidades totalmente diferentes entre si têm implementado medidas restritivas para garantir a própria preservação e a manutenção da atividade turística, em razão da sua importância para o sistema econômico. É o caso de Barcelona, Espanha (1,6 milhão de habitantes e quase 10 milhões de visitantes em 2022).

“O turismo mata a cidade”, dizia um cartaz pregado em postes há algum tempo. Além dos problemas comuns, o tabagismo incomoda a ponto de o governo proibir o fumo nas praias – as bitucas dos cigarros levam dez anos para desaparecerem e ocupam o segundo lugar na lista de resíduos encontrados nas praias europeias.

Também é o caso de Machu Picchu, Peru (5,2 mil habitantes e 1,5 milhão de visitantes por ano). A Universidade de Kyoto, Japão divulgou (em 2001) estudo apontando que a cidade inca estava cedendo 1cm por mês, em razão da quantidade excessiva de turistas. O fato de a montanha estar encravada numa falha geológica preocupou a UNESCO.

Diante da possibilidade de o lugar entrar na lista de patrimônio mundial em risco, o governo peruano adotou uma série de medidas para organizar o fluxo turístico. Embora a fiscalização siga falha, de modo geral os controles melhoraram.

Moradores de outras cidades turísticas como Lisboa, Nova York, Paris, Praga, Roma, São Francisco, Toronto… demonstram inquietações semelhantes. Os serviços de aluguel de curto prazo – onde reina o AirBNB –, com tarifas bem mais em conta do que a rede hoteleira, são apontados como uma das principais causas da massificação ao baratear muito a hospedagem.

Esse novo modelo de negócio tem prejudicado o mercado imobiliário desses lugares, prejudicando os residentes que se veem obrigados a migrar para locais mais baratos.

No Brasil Embora os números do país ainda sejam bastante modestos – 3,6 milhões de visitantes estrangeiros em 2022 – se comparados ao mercado global, os problemas do fluxo turístico intenso também afligem o Brasil, inclusive porque temos um turismo interno robusto.

Engarrafamentos, falhas no fornecimento de energia e água, desabastecimento, aumentos de preços, violência e poluição são apenas alguns itens que infernizam a vida dos moradores de lugares invadidos por turistas. Balneário Camboriú, Búzios, Cabo Frio, Campos do Jordão, Fernando de Noronha, Florianópolis, Ilha Bela, Ilha Grande, Maceió, Natal, Pipa, Porto de Galinhas, Praia Grande, Rio de Janeiro, Santos, São Miguel do Gostoso costumam sofrer com o overtourism.

Soluções Há muita gente empenhada em buscar soluções. Recomendar destinos menos conhecidos e investir neles já vem sendo uma prática de alguns países, inclusive para manter dentro de casa as receitas turísticas.

Já o professor da USP Mário Beni defende uma ação ampla e organizada, apoiada por “instrumentos de controle que abarquem todo o trade de turismo para que seja possível, por exemplo, emitir alertas a agentes de viagem sobre a saturação das vendas de determinados destinos quando um limite de comercialização for atingido”.

Os profissionais que definem os rumos do setor, hoje ocupados em desenvolver metodologias de avaliação dos desafios que locais de grande fluxo terão de administrar nos próximos anos e planejar o futuro mais distante, já começam a destinar olhares preocupados para o overtourism.

Embora ainda seja um problema sazonal que afeta pequeno número de destinos – a empresa francesa Murmuration, que monitora via satélite o impacto ambiental do turismo, afirma que 80% dos turistas visitam somente 10% dos destinos mundiais –, não pode mais ser ignorado.

Em qualquer cenário, o turismo continuará uma força positiva capaz de gerar muitos benefícios em diversas direções, inclusive além do simples crescimento econômico. Por isso, cada vez mais será importante que o turista pratique boas regras de urbanidade em seus deslocamentos.

É preciso aprender a perceber o que nossa viagem pode causar na vida dos moradores dos nossos destinos. Nada melhor do que deixar boas lembranças que possam combinar com as que pretendemos trazer na bagagem ao voltar para casa.

 

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