CHARLIE WATTS: O DISCRETO E ELEGANTE MOTOR DOS ROLLING STONES

 

Sempre com estilo

“Adoro o fato de apenas um dos gajos dos Rolling Stones se vestir como um homem de 77 anos.” O comentário no Twitter virou meme e espalhou-se pelas redes sociais. Alinhados, na imagem, estava Ronnie Wood, Mick Jagger e Keith Richards, com os cabelos volumosos, olhos pintados, anéis, cigarro na mão e casacos vermelhos de veludo.

À direita, o elemento que parecia adivinhar um jogo do “o que é que não pertence a esta imagem”, o baterista Charlie Watts, de simples camisa branca abotoada por dentro de um discreto casaco impermeável. Os dinossauros do rock com quase 60 anos de carreira pareceram sempre invulneráveis, até hoje.

Esta terça-feria, 24 de agosto, a família de Watts anunciou a sua morte. “Morreu pacificamente num hospital londrino, rodeado da sua família”, revelou o seu agente. Não se conhece a causa da morte, apesar de em 2004, o músico ter combatido com sucesso um cancro na garganta. Tinha 80 anos.

Tal como na imagem do meme, Watts foi sempre o membro discreto dos Stones. Ou, melhor dizendo, foi sempre menos explosivo e efusivo do que os espampanantes Jagger e Richards — nos looks, na vida pessoal e até na forma como manejava a bateria.

Não era baterista de solos estonteantes e mil habilidades. Usava um kit pequeno e tinha ritmo. Muito ritmo. Era também um apaixonado por jazz, apesar de se ter tornado numa lenda do rock — ele que em 2016 foi nomeado pela revista “Rolling Stone” como o 12.º no ranking dos 100 maiores bateristas de sempre.

Foi durante 60 anos o verdadeiro compasso da banda, um segredo pouco bem guardado pelos colegas de banda. “O Charlie é o motor”, explicou Ronnie Wood. “Não vamos a lado nenhum sem o motor.”

Nesta foto todos têm mais de 70 anos — mas só um se veste como tal

Nascido em Londres, viu a sua casa ser destruída pelos bombardeamentos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, já com 13 anos, começou a tocar bateria e a imitar os seus heróis do jazz, sobretudo Charlie Parker.

Foi como membro dos Blues Incorporated, uma banda de blues, que conheceu Brian Jones, que o levou até Jagger e Richards. Foi o escolhido para substituir Tony Chapman, o baterista que havia deixado a banda ao fim de alguns meses. Esse encontro selou a entrada de Watts nos The Rollings Stones. “E o início de quatro décadas a ver o rabo do Mick a saltitar à minha frente”, revelou.

Sempre discreto, Watts trazia mais à banda do que apenas um par de batidas ritmadas. Era formado em design e chegou a desenhar a capa do álbum de 1967, “Behind the Buttons”. Foi também dele a ideia de promover o tema “Brown Sugar” em cima de um autocarro, enquanto tocavam pelas ruas de Manhattan.

Ainda assim, nunca se interessou muito pela fama. “Nunca tive grande interesse [pela fama] e continuo a não ter”, revelou em 1991. “Não sei o que é o showbiz, nunca vi a “MTV”. Há pessoas que simplesmente tocam instrumentos e eu tenho orgulho em saber que sou uma delas.”

A desvalorização do seu talento era constante e gostava de se ver assim mesmo, como um orgulhoso baterista e membro da banda. “Cresci com a teoria de que o baterista é um acompanhante. Não gosto de solos. Admiro quem os faz, mas prefiro bateristas que toquem com a banda. O desafio do rock n’ roll é a regularidade e a minha cena é fazer com que se torne num som dançante.”

Apesar da discrição, Watts tinha também um apurado sentido de humor, como demonstrou por altura do 30.º aniversário da banda, quando lhe perguntaram como tinha sido passar três décadas numa das maiores bandas do mundo. “Foram cinco anos de muito trabalho e 25 anos a vadiar por aí.”

Sobretudo nessa fase inicial, era habitual assistir a invasões de palco de fãs ávidas por agarrarem qualquer um dos membros da banda. Watts chegou a ter que tocar com mulheres agarradas aos seus braços. Em palco ou nos camarins, resistiu sempre à tentação.

Contrariamente aos colegas de bandas, que casaram já como quarentões — ou, no caso de Ronnie Wood, nunca o chegaram a fazer —, Watts casou-se com apenas 23 anos, um ano depois de se alistar nos The Rolling Stones. Casou com Shirley Ann Shepherd, estudante de escultura que tinha conhecido num ensaio em 1961.

Estavam casados desde 1964

Ao contrário de Watts, Shepherd era extrovertida e implacável, o que criou alguns problemas dentro da banda. “Havia uma regra que proibia mulheres [nos ensaios e bastidores]”, revelou a então namorada de Jagger, Chrissie Shrimpton. “Mas a Shirley conseguia sempre contornar a regra. Estávamos proibidas de ir ao estúdio enquanto eles gravavam, mas ela decidiu ir e levou-me com ela.”

Perante um Mick Jagger furioso e a gritar para saírem, Shepherd manteve-se firme. “Disse-me para não me mexer. Ficámos ali sentadas enquanto o Mick fazia caretas para nós do outro lado do vidro da sala de controlo.”

Apesar de alguns percalços, Watts revelou mais tarde que a mulher teve sempre uma boa relação com os colegas. “O único arrependimento que tenho de toda a minha vida foi de não ter estado tempo suficiente em casa. Mas sempre que voltava de digressão, a Shirley dizia-me que eu era um pesadelo e mandava-me voltar a sair. É uma mulher incrível”, explicou anos mais tarde.

Não tinha feitio de estrela rock e também não se vestia como tal. A imagem que correu as redes sociais é o espelho perfeito dos 60 anos da banda: enquanto Jagger, Richards e Wood optavam pelos looks mais espetaculares, Watts ficava-se por opções mais discretas, mas não menos estilosas.

“Tenho cerca de 200 fatos em Londres e mais uns quantos em Devon. Visto-me de uma forma muito tradicional, à velha inglesa”, revelou à “GQ” sobre o seu amor por fatos feitos à medida. Embora tenha orgulho neles, confessava que odiava as obrigatórias sessões fotográficas.

“Sempre me senti deslocado nos Stones, pela forma como me visto. Estou de sapatos e eles de sapatilhas. Odeio sapatilhas, mesmo que sejam tendência”, contou.

Era conhecido pelo estilo impecável dos seus ternos

Ser discreto não significava, contudo, que Watts não explodisse de vez em quando, mesmo perante os colegas e estrelas da banda. Jagger foi sempre a cara, a voz e o líder dos Stones e, nos anos 80, a possibilidade de se aventurar a solo deixou algumas marcas nas relações com os colegas.

Durante uma digressão, Jagger e Richards chegaram ao hotel onde estava hospedada a banda perto das cinco da madrugada. “O Mick ligou ao Charlie a perguntar: ‘Onde é que está o meu baterista?’ Ninguém respondeu e ele pousou o telefone”, recorda o guitarrista na sua autobiografia, “Life”.

“Estávamos ali sentados, a beber, quando passado vinte minutos bateram à porta. Era o Charle, vestido com um fato Saville Row, todo impecável. Gravata. Barbeado. Tudo nas horas. Conseguia cheirar o perfume”, conta. “Passou por mim em direção ao Mick, agarrou-o e disse-lhe: ‘Nunca mais voltes a chamar-me o teu baterista.’ Levantou-o e deu-lhe um soco.”

O incidente foi rapidamente ultrapassado. “Doze horas depois, o Mick estava a dizer que se lixe: ‘Vou lá baixo e vou fazê-lo novamente. Não é com qualquer coisa que se consegue irritar aquele homem.”

Na verdade, o discreto Charlie Watts dos anos 60 e 70 mudou com a chegada dos anos 80. Uma crise de meia idade fê-lo cair na bebida e nas drogas. De tal forma que até Keith Richards — o homem famoso por ter admitido snifar cocaína com as cinzas do falecido pai — ficou preocupado e teve que intervir.

“Tornou-se mesmo muito mau, de tal forma que o Keith — Deus o abençoe —, me disse para atinar”, confessou Watts, que recorda o dia em que desmaiou no estúdio. “Perdi os sentidos e para mim isso era mau profissionalismo. O Keith pegou em mim — e logo o Keith, que eu vi passar por todos os estados e fazer tudo e mais alguma coisa — e disse-me: ‘Este é o tipo de coisas que fazes quando tens 60 anos.”

“Olhando para trás, acho que foi mesmo uma crise de meia idade. Tornei-me numa pessoa totalmente diferente em 1983 e só saí dela em 1986. Quase perdi a minha mulher e tudo o resto por causa do meu comportamento”, escreveu no livro “Portrait of Charlie”.

“Ao fim de dois anos em speeds e heroína, estava muito doente. A minha filha costumava dizer-me que parecia o Drácula. Por pouco não me matei.”

“Quatro décadas vendo o rabo do Mick a saltitar à minha frente”

A saída desta fase complicada surgiu um pouco por acaso, quando partiu o tornozelo durante um concerto. “Parei completamente com as drogas, por mim e pela minha mulher. As bebidas e as drogas não eram para mim.”

Cinquenta anos depois de se juntar à banda, chegou a pensar reformar-se em 2012, mas mudou de ideias. “Digo sempre que me vou reformar no final de cada digressão. Depois tenho suas semanas de folga e a minha mulher pergunta: ‘Não tens que ir trabalhar?’”, contou ao “The Guardian”.

Aguentou quase mais uma década e só no início de agosto revelou que não iria acompanhar a banda na sua próxima digressão, com a justificação de ter que se submeter a uma cirurgia. Ao longo dos últimos anos, aproveitou a fortuna para se dedicar a outras paixões.

Charlie Watts era um especialista em antiguidades de prata e tornou-se num colecionador, sobretudo de carros clássicos, apesar de ele próprio nunca ter tirado a carta de condução. Juntamente com a mulher, criaram uma quinta onde criavam cavalos e recolhiam cães de corridas reformados.

Apesar de ter ficado 60 anos na sombra de Jagger e Richards, as estrelas dos Stones reconhecem que nunca teriam tido sucesso sem o seu talento — e sobretudo o seu feitio. “São incrivelmente humildes”, explicou Richards em 1983, sobre Charlie Watts e Bill Wyman, colegas de banda. “Imagino que se eles fossem pessoas diferentes, teríamos colapsado completamente ao fim de pouco tempo.”

FONTE E FOTOS: nit.pt

Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *