Para Chico, sem açúcar e sem afeto (Minervino Wanderley)

Nara Leão com Chico Buarque, em 1977: música “Com Açúcar e Com Afeto” foi escrita para a cantora – Acervo Pessoal

O que houve, poeta? Você tem uma cabeça brilhante. Sua extensa obra dispensa comentários e encantou gerações. Que história é essa de dizer que nunca mais vai cantar “Com Açúcar e Com Afeto”? (Entrevista à jornalista Regina Zappa – 4 de fevereiro de 2022). Acha que a canção tem cunho machista? Não é exagerado esse temor?

Ora, eu me peguei pensando aqui com meus botões, foi Nara Leão quem lhe encomendou a canção, ela mesma disse que “queria uma música que falasse dessas ternuras de mulher”. Conhecendo aquela moça, dá para imaginar que ela sairia por aí cantando algo que ferisse o feminino? Menos, poeta. Menos! Essa também foi a primeira mostra da sua capacidade de interpretar a alma feminina, que o tempo consagraria como uma de suas marcas registradas.

É uma verdadeira “serenata”. Linda e mostra um retrato – real – do cotidiano. E você nem foi o primeiro. Em 1942, a música “Ai Que Saudades da Amélia”, de Mário Lago e Ataulfo Alves, tocou nesse assunto. E foi tão bem aceita que chegou à final do melhor samba do carnaval daquele ano. Estava na boca do povo. Homens e mulheres cantarolavam sem o menor receio de ferir quem quer que fosse.

Aliás, foi Ary Barroso foi um dos primeiros a abordar esse tema.  Esse gênio compôs, em 1939, “Camisa Amarela”. A música retrata o folião que saiu para o carnaval no sábado – vestido com uma camisa amarela – e só voltou na quarta-feira. No final, a mulher conformada ainda diviniza o companheiro dizendo que, quando ele chegou após a farra, “pegou a camisa amarela e botou fogo nela […] passou a brincadeira e ele é pra mim meu Sinhô do Bonfim”.

Poeta, essas situações de “Amélia” ou “Camisa Amarela” não são ‘privilégios’ das mulheres. Tem homens que passam por isso. Conheço uns que fazem tudo que a mulher manda e vivem felizes ao lado da “patroa”. Aguentam infidelidades, farras, mentiras, mas não deixam de obedecer aos caprichos da “madame”.  Isso, além de não ser da conta de ninguém, vem lá de dentro de cada um. Você sabe disso, tenho certeza.

Só não me venha dizer que está se rendendo ao (argh!) politicamente correto. Às favas quem pensa assim. Você pode até parar de cantar a música, mas eu, ao lado de Jane, do grupo ‘Os Três Morais’, bom como milhões de pessoas, continuarei a soltar minha voz horrível, mas, convenhamos, sempre afinada pelo coração.

Chico, conheço algumas “Amélias” e uma me confidenciou que quando o homem dela chega em casa depois de uma farra, vai encontrar seu prato predileto à sua espera no micro-ondas. E acrescento: se ele olhar com cuidado, vai ver que tem um beijo no seu retrato que repousa na cabeceira dela.

Pare com isso, rapaz. Quem Te Viu, Quem Te Vê! Meu caro amigo, me perdoe por favor, mas lembre-se da decepção de “Geni”, que salvou o mundo e depois foi jogada no lixo; de “Rita”, que tudo levou e nem herança deixou; da Banda, que até a moça feia debruçou na janela pensando que era para ela; de “Apesar de Você”, que animou a esperança para que o amanhã fosse outro dia; do “Cotidiano”, que acaba com tudo quando todo dia ela faz tudo sempre igual.

Porra, Chico, você foi o melhor arquiteto, o melhor engenheiro, o melhor operário dessa “Construção”, que teve um infeliz em busca da paz que:

Tropeçou no céu como se fosse um bêbado

Flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Fui boêmio, meu poeta. Nunca fizeram meu doce predileto para que eu ficasse em casa. Cheguei pelas madrugadas e nunca esquentaram meu prato, não beijaram meu retrato, nem abriram os braços para mim.

Tá vendo como pode existir um boêmio e nenhuma “Amélia?”

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