Por Manoel de Oliveira Cavalcanti Neto
Desde o século XII aparecem indícios que mostram como o latim era considerado alheio às línguas vivas. Em Portugal, no século XIII, os documentos administrativos começaram a ser redigidos na língua vernácula, anteriormente apenas utilizada para fins festivos e religiosos.
- Dinis, em 1279, tornou o português idioma geral no uso da escrita na chancelaria régia, mas “só na última década do século XIII a produção documental particular em português cresce significativamente, tornando-se dominante relativamente à latina já no século seguinte”. Por outro lado, se a primeira documentação é de finalidade prática, não devemos esquecer a vasta produção literária, o que já indiciava a importância do português.
Já no século XIV Dante, na obra De vulgari eloquentia (1303-1304), fez a primeira reflexão sobre a língua vulgar; no Convívio (1304-1307) ainda afirmava que “o vulgar seguia o uso e o latim a arte”, segundo o velho preceito da praxe para a língua do povo e o latim para fins mais sublimes.
Porém, embora existissem vozes discordantes, o latim era ainda o indiscutido veículo de transmissão do saber. As línguas antigas, o grego e o latim, eram os veículos indispensáveis de todo o ensino. Não só se lia por livros latinos e gregos, mas até o idioma do Lácio era a linguagem familiar dos estudantes. Era quase infamante, mesmo fora das aulas, o falar-se a linguagem vernácula. De forma que o latim continuou vivo até bem entrado o século XVI.
“Dizemos que o português é a língua de Camões e com razão. A partir dele o português se afastou dos latinismos, da influência castelhana, harmonizou a grafia, deu-lhe uma alma própria”. Os Lusíadas, um texto épico renascentista de sua autoria, escrito provavelmente em 1556, apresenta uma estrutura bem definida quanto às estrofes, rimas, ritmo, harmonia e estilo, representando definitivamente um marco na transição do português arcaico para o moderno.
Poucos anos antes de Os Lusíadas, surgiram as primeiras gramáticas: a de Fernão de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1540) e, posteriormente vieram outros ortógrafos, que procuraram firmar uma ortografia definitiva, mas o português continuou sendo escrito conforme o entendimento particular de cada escritor, que adotava o critério que considerava mais conveniente.
Fernão de Oliveira, o primeiro gramático português, com a sua Gramática da Lingoagem peotuguesa (1536). João de Barros, um dos grandes cronistas português e um dos maiores escritores renascentista, além de ser considerado um grande pedagogo, em 1540 publica Gramática da Lingoagem peotuguesa, juntamente com o Diálogo em louvor da nossa linguagem, onde compara palavras novas e velhas.
Garcia de Orta foi ousado, sendo um dos primeiros naturalistas-cientistas a escrever na língua do povo e não na latina como era costume até então. Ele próprio assegurava isso na sua obra Coloquios dos simples, e drogas he coisas mediçinais da India (Goa, 1563). Contudo, estes seus Colóquios tiveram de ser traduzidos para latim para conseguirem ter repercussão internacional.
Jerónimo Cardoso, autor do Dictionarium latinolusitanicum (1569), o primeiro trabalho lexicográfico português entre o latim e a língua vernácula. Do mesmo modo agiram Pêro de Magalhães Gândavo nas Regras que ensinam a maneira de escrever a ortografia da língua portuguesa: com um Diálogo que se segue em defesa língua (1574) e Duarte Nunes de Leão na Orthographia da lingoa portvgvesa (1576).
Afinal, aquelas vozes dissidentes que surgiram acabaram por constatar que o latim, língua restrita a saberes delimitados, cedia a sua preponderância na configuração dos saberes e do acesso ao conhecimento. Como a maioria das línguas possuía uma norma ortográfica mais ou menos estável, aliado à difusão da imprensa, isso provocou uma ascensão incomparável das línguas vulgares e uma fratura entre Idade Média e Renascimento.
A necessidade de atualizar e trocar a informação era peremptória e era feita em língua vernácula. Se uns séculos antes os reis portugueses tinham elevado o português à língua oficial do reino para evitar mal-entendidos administrativos, no XVI continua a mesma orientação — paralela ainda ao latim — e Garcia de Orta também escolhera o português pelas mesmas razões embora aplicadas à ciência; mais uma vez a singularidade lusa. O diálogo entre o latim e o português ficou reservado só a uns poucos, passando a língua de Camões a ser a língua escrita em todos os domínios e ganhando estatuto de maioridade, na sua epopeia pela pouca mudança que ocorreu entre as duas.
Comentários (5)
Estimado Manoel, parabéns por mais um brilhante artigo!!!
Parabenizo ao autor pela riqueza do texto que trás ricas informações e detalhes!
Obrigado Jucá.
Caro Senhor, curvo-me perante o seu conhecimento. Um texto tão nobremente redigido e extremamente elucidativo, sobre aquela que é a minha Língua Pátria. Respeitosos cumprimentos
Caro Paulo,
Infelizmente com a globalização a língua portuguesa, como muitas outras, deverá ser sobrepujada pelo inglês. Que tenhamos novos Camões para que nossa língua se imponha. É preciso escrever sobre a história da língua portuguesa para que as novas gerações lhe deem o devido valor.